O extraordinariamente complexo comportamento de dizer “oi”


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O comportamento humano é incrivelmente elaborado. Decidi ilustrar sua complexidade e descrever suas três forças determinantes por meio da análise da aparentemente simples ação de dizer “oi”. Desse modo, ficará claro as nuances que uma análise do comportamento completa deve considerar.

Vamos imaginar uma pessoa andando pela rua. Quando ela encontra um velho amigo, com quem passou momentos divertidos, diz “oi”, sorrindo. É esse ato que vou analisar.

Todos os comportamentos humanos são uma mistura de três forças fundamentais: a genética ou a história da nossa espécie, nossa história pessoal, e a história do grupo ao qual pertencemos. Para entender um comportamento, temos que compreender um pouco de cada uma dessas forças e entender como elas influenciam as outras. Vamos estudar a ação de dizer “oi” começando pelo nível mais primitivo.

HISTÓRIA DA ESPÉCIE
Nossos corpos são idênticos aos dos humanos que viveram milhares de anos antes de nós. O que nos diferencia deles é a cultura: o acúmulo de conhecimentos e sua comunicação. Isso não muda o fato de que temos os mesmos cérebro, braços e coração há muitos e muitos anos. Nosso formato biológico é produto da evolução da espécie.

No texto sobre desejo e vontade, contei que uma das necessidades humanas básicas é a de estar em grupo. Humanos e outros animais possuem alguns “rituais” para manter a coesão da associação. Um desses rituais é um tipo de sinal que indica ‘paz’ ou, simplesmente, ‘ausência de conflito’. Pode ser um acenar, um balançar de cabeça ou a verbalização da palavra “oi”. A ausência desse sinal é interpretada como inimizade (isso foi verificado em humanos e em alguns outros animais, como macacos). A tendência de cumprimentar é, portanto, de origem biológica. Em outras palavras, nosso cumprimento habitual é uma forma aprimorada de um comportamento automático de nossa espécie, relacionada à vida em grupo. (vejam “Comunicação não-verbal”, da Flora Davis).

Há mais. Nosso protagonista sorriu ao ver o amigo. Rir também é um comportamento ‘automático’, que vem ‘de fábrica’: obra de nossa história evolutiva. A risada ‘honesta’ ocorre junto com emoções prazerosas e tem a importante função social de indicar aos outros como estamos nos sentindo. Ao ver a face alegre do protagonista que disse “oi”, o amigo sabe que está em uma situação segura e pode relaxar. Isto quer dizer que é provável que também exista ‘automaticamente’ em nós a capacidade de compreender um sorriso.

Dizer a palavra “oi”, por sua vez, é a síntese de uma série de capacidades humanas básicas. Possuímos um aparelho fonador moldado pela evolução: grupos capazes de emitir sons elaborados podiam se comunicar com eficiência, e esta é uma ferramenta poderosa para a sobrevivência da associação. Além disso, também é conseqüência da nossa história como espécie a habilidade de relacionar eventos arbitrários, tais como ligar a palavra “oi” com a situação de encontro entre duas pessoas. Ser capaz de utilizar um símbolo no lugar de um objeto é algo extremamente refinado e ligado à nossa herança cultural, mas esse comportamento não seria possível se não possuíssemos ‘de fábrica’ a possibilidade de fazer a ligação entre eventos tão distintos quando uma coisa e uma palavra.

Vamos mais longe.

HISTÓRIA PESSOAL
Cumprimentar provavelmente tem origem na história da nossa espécie, mas dizer “oi” não. Falar é possível por causa do nosso aparelho fonador, mas não falaríamos se não tivéssemos uma história de aprendizagem. Desde criança começamos a aprender. Relacionamos a voz dos nossos pais com suas faces e modo de andar. Somos ensinados que colocar o dedo na tomada dá choque. Aprendemos a pedalar uma bicicleta. E, claro, aprendemos a falar e a utilizar certas palavras para descrever e se referir a eventos e objetos.

Dizer “oi” envolve uma série dessas aprendizagens. Primeiro, precisamos ser capazes de emitir o som “oi”: essa conquista complicada é apenas o primeiro passo para uma utilização correta da palavra. Em seguida, ou simultaneamente, somos ensinados explicitamente, ou simplesmente observamos, em que situações costuma-se dizer “oi”. É nesse momento que percebemos que esta palavra é utilizada quando encontramos alguma pessoa conhecida, ou quando estamos nos apresentando a alguém. A partir daí relacionamos o evento da aproximação de uma pessoa com a palavra “oi” e a utilizamos corretamente.

No exemplo que estou analisando, o sorriso do nosso protagonista ao ver seu amigo é sincero. Mas quando encontramos alguém com quem não temos uma relação muito boa, também costumamos sorrir. Esse sorriso ‘falso’, ao contrário do verdadeiro, provavelmente é produto mais da nossa história pessoal do que da história da nossa espécie. Aprendemos que sorrir é correto e somos reforçados quando cumprimentamos alguém com um sorriso, ainda que ‘amarelo’. Além disso, cumprimentamos pessoas de quem não gostamos muito porque somos ensinados a evitar conflitos e a sermos educados.

O modo de cumprimentar também é produto de nossa história pessoal. Abraçar, esticar uma mão, dizer “oi”, levantar os braços, acenar, etc, são formas de cumprimento que aprendemos no decorrer da vida. Relacionamos cada forma de cumprimento com o grau de intimidade que temos com a parte cumprimentada (isto provavelmente também tem certa origem na história da espécie). Assim, abraçamos nossos amigos próximos, mas apenas acenamos para quem conhecemos há pouco tempo.

Todos esses aprendizados ocorrem porque nosso formato biológico permite. Analisamos brevemente duas forças envolvidas no comportamento. Agora podemos completar o trio.

HISTÓRIA CULTURAL
Dizer “oi”, como vimos, é uma confluência da nossa história como espécie e da nossa história pessoal. Mas a palavra “oi” é utilizada apenas pelos falantes de português. Um americano ou inglês falaria “hi”. Nossos hermanos, por sua vez, diriam “hola”. Cada grupo tem um conjunto específico de palavras e a origem desse conjunto é produto da história da cultura. Praticamente tudo o que aprendemos em nossa história pessoal é relacionado com a história da nossa comunidade.

No comportamento de cumprimentar alguém, a linguagem não é a única variante social envolvida. Japoneses costumam curvar seus corpos (o ângulo de curvatura tem relação com o status da pessoa cumprimentada). Árabes gostam de sentir os cheiros dos seus interlocutores. Por sua vez, dizem que os brasileiros se tocam mais do que os ingleses, por exemplo. Apesar de parecerem diferentes, todas essas formas de cumprimentar têm a mesma função: sinalizar ‘paz’ ou ‘ausência de conflito’.

As diferenças ‘culturais’ podem acarretar alguns problemas, quando não compreendidas. Além disso, não ocorrem apenas entre grandes grupos. Famílias diferentes têm práticas diferentes. Vamos voltar ao exemplo do rapaz cumprimentando o amigo. Ele disse apenas “oi” e sorriu; vem de uma família reservada. O amigo, por outro lado, vem de uma família extrovertida e estava esperando um abraço apertado. Essas diferenças culturais poderiam criar desconforto: de um lado, uma pessoa se sentindo rejeitada; de outro, um rapaz que tem certeza ter cumprimentado de modo correto. Ambos estariam corretos. O conflito terminaria somente com compreensão (mas este não é o assunto deste texto).

Agora que vimos o trio de forças envolvidas em nossos comportamentos, precisamos de uma conclusão.

SÍNTESE: SELEÇÃO PELAS CONSEQÜÊNCIAS
As histórias genéticas, pessoal e cultural são moldadas e mantidas por suas conseqüências. Por exemplo:

  • Genética: Ser capaz de relacionar eventos arbitrários existe ‘automaticamente’ em nós porque foi uma característica que permitiu nossa sobrevivência. É difícil saber quantas espécies que não possuíam essa capacidade foram extintas.
  • Pessoal: Dizemos “oi”, sorrimos ou abraçamos, porque esse comportamento costuma ser reforçado por um sorriso em retorno, ou por uma conversa amigável. Muito provavelmente, se disséssemos “bamoca” seríamos ignorados: nenhuma conseqüência manteria o comportamento.
  • Cultural: Em geral, as práticas culturais existentes são mantidas porque funcionam: produzem conseqüências positivas. Em uma cultura saudável, práticas que deixam de produzir tais conseqüências são substituídas por outras, mais funcionais. Talvez no passado os brasileiros cumprimentassem mais estranhos do que hoje; o aumento da violência pode ter modificado essa prática e reduzido os cumprimentos a pessoas conhecidas ou a lugares ‘seguros’.

Vejam quanta análise é possível para o comportamento de dizer "oi". Uma análise do comportamento adequada deveria considerar essas três forças determinantes. Todas elas têm sua parte em praticamente todos os comportamentos que emitimos (apenas os reflexos e relações respondentes não entram na conta). Quando compreendemos o comportamento como o evento que marca a reunião desses três determinantes, fica claro como mesmo um ato simples como dizer “oi” envolve acontecimentos de diferentes naturezas: somos extraordinariamente complexos.

Não somos apenas o resultado dos nossos genes, nem simplesmente folhas em branco escritas pela aprendizagem, muito menos meros produtos sociais. Somos a maravilhosa fusão dessas três forças fundamentais.

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Robson Faggiani