Pensando o Corpo Existencial: fragmentos de estudo


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O corpo existencial, como vimos pensando em contribuições anteriores, bem pode ser entendido como uma presença de entremeio – algo que está “entre” a realidade pessoal e a realidade social – ou, mais adequadamente, entre duas subjetividades – a subjetividade própria e uma subjetividade outra.

Vale dizer, faz parte da realidade corporal a faculdade de ser uma existência que só faz sentido se mediar as experiências do sujeito com o outro – quase como se não pertencesse ao sujeito, mas, também, não pertencendo ao outro. O sujeito em sua corporalidade (corpo-sujeito)1, vive uma dualidade e unidade impossíveis, pois tanto se sente incompleto se não inclui o corpo como sua subjetividade, formando uma unidade, quanto se sente distante do corpo, vivendo uma dualidade, onde nada ou pouco tem a ver com ele, o corpo. Esse sentimento de dualidade, que destrói a unidade entre sujeito e corpo, é histórico, nada possuindo de realidade natural. Contudo, exatamente essa distância criada pela historicidade do humano, acaba por dar-lhe o espaço para a existência do outro. Isso se explica pela possibilidade, a partir da dualização do corpo e sujeito (corpo e mente, em outros modelos de pensamento), de um distanciamento de si a si, e também, de um encontro com o outro a partir da massa da corporalidade.

É necessário que passemos a entender provisoriamente, para alcançarmos os efeitos históricos sobre o corpo existencial, que este surge após uma doma da carne por meio do trabalho social incumbidos aos responsáveis na missão de prover o novo sujeito de existencialidade. Ou seja, de providenciar um corpo comprometido com valores para a carne inocente2. Embora não se trate de outra carne, precisamente por que o corpo existencial é a carne discursivizada, nada nos faz suspeitar de que a carne seja apenas carne. A carne se faz verbo (discurso) por meio de um trabalho concreto, material, da linguagem – sendo o corpo tanto o resultado como a causa do sujeito. A carne embebida em discurso se chama corpo, por mais que não saibamos em que momento o corpo foi apenas carne. Ou apenas podemos lançar mão de um momento teórico onde o sujeito e corpo inexistiam sendo precedidos pela carne. Essa impossibilidade de delinear o momento mesmo da criação do corpo a partir da carne faz com que se abra uma brecha para o pensamento dual onde sujeito e corpo não são a mesma coisa e pouco ou nada se comunicam em modelos cartesianos, por exemplo. Nesses modelos, que vigem no cotidiano, apesar de rechaçados por agendas de pesquisas filosóficas, psicológicas e antropológicas, aparecendo no linguagem sob enunciados simples e contundentes, tais como: “meu corpo” e outros que traremos mais à frente.

Como já dissemos em trabalho anterior, que antecipa algumas destas idéias, o corpo natural (o organismo) não faz parte do cotidiano afetivo a não ser como contraste entre um corpo-que-já-é-sujeito e um corpo que o sujeito submete ao profissional das medicinas, entre as quais, aqui trouxemos a fisioterapia para um diálogo com a visão existencial de corporalidade. Portanto a carne é, no mais as vezes, percebida como um acidente. Fortuitamente, sob condições drásticas, onde os tecidos orgânicos são trazidos à realidade, nos relacionamos com o real do corpo. Quando o corpo morto se mineraliza estamos diante da carne fria, sem vida. E de novo, mesmo sob a evidente desaparição do sujeito e da transformação do corpo em carne, optamos por salvar o sujeito, salvando a dualidade sujeito/corpo. Esse salvamento do sujeito após o retorno do corpo em carne, evita que aquele se torne apenas memória, domesticando a fatalidade do confronto com o nada de ser. Como é de se esperar, teremos de voltar a isso mais a frente. Por ora retomemos a proposta resumida em “a carne se fez verbo”.

Sabemos, ainda que precariamente, com o andar da reflexão, que a carne é interpelada em corpo surgindo, dessa interpelação o sujeito3. O sujeito surge no momento mesmo em que o corpo emerge do organismo, chamado pelo discurso. E o discurso é a voz do mundo encarnada em representantes ideológicos que cuidarão para que a cultura e seus valores convoquem a carne a ser sujeito. Esse é o corpo existencial. Corpo que se interpõe entre o sujeito e o outro sujeito. Corpo do fisioterapeuta que contata o outro-paciente. Duas posições discursivas (dois sujeitos) em diálogo: uma na posição fisioterapeuta e a outra na posição paciente. Os corpos ao mesmo tempo os coloca em contiguidade, porque são corpo-sujeitos, e também os coloca separados porque o discurso de cada um impõe barreiras intransponíveis.

Nada que ambos não tentem minimizar. Por exemplo, o paciente de fisio que insiste em contar suas vicissitudes afetivas ou dar vida aos acidentes corporais narrando sua saga por hospitais, médicos e dificuldades enfrentadas com os distúrbios corporais. São disturbações do pensamento, da confiança, do futuro; são fantasias que completam os vazios de informações; são as angústias com as próprias forças frente as exigências de tratamento e do sofrimento. São teatros corporais e não têm nada a ver com a carne. Se alguém entrevê a carne nesse processo esse será o médico. Para o paciente quanto menos entrevê carne no corpo, melhores são suas condições para responder ao tratamento, resistir às dores e garantir imunidade emocional, contraparte corporal da imunidade biológica.
Paremos por um momento e façamos um apanhado das questões levantadas e outras possíveis. a) Podemos pensar em pessoas como unidades indissolúveis cujas “partes” são o sujeito e o corpo (ou mente e corpo; ou alma e corpo em agendas filosóficas biologistas)?

Neste caso, seríamos obrigados a nos referir a um corpo-sujeito que desaparece com a morte, sobrevivendo suas memórias inscritas nos sobreviventes. b) Ou aventarmos a possibilidade de uma pessoa dual, onde o sujeito é completamente diferente e separado de seu corpo? Teremos aí um caso, por sinal dominante nas agendas teologizantes, onde o desaparecimento não se dá; o corpo se desfaz e o sujeito sobrevive na forma de uma alma transcendental. Não apenas em memória, mas substancialmente, ultrapassando os limites temporais e espaciais. Quando dissemos “dual” isso pode ser questionado dizendo-se que jamais foi suposto que o corpo fosse sujeito; deste modo alguém poderia dizer que este modo de ver o ser humano é, na verdade, monista e não dualista. O corpo jamais participou da substância subjetiva, embora tenha provido a subjetividade de experiências de subjetivação.

Há uma solução para esse impasse? Aparentemente é uma questão de posicionamento (alguns dirão, de convicção); ou nos posicionamos ao lado dos pensamentos que privilegiam uma substância transcendental e aí o sujeito é ahistórico, todo conhecedor, fonte dos valores ideológicos. Ou nos colocamos na posição dos que entendem o sujeito como histórico, político, sem ser fonte dos valores é apenas depositário da cultura e tradições. Esse último sujeito é livre para escolher, mas sofre as injunções de mercado e a socialização do Estado, nada tendo a ver com forças transcendentais. É livre para escolher o que a ideologia permite. Já o sujeito ahistórico, da religião, é escravo do destino; por mais que escolha não se trata de liberdade e sim de destinação. Só pode escolher um destino. Como podemos ver trata-se de um problema que pode ser contraído em uma palavra “liberdade”.

Sartre disse da liberdade, que ela é o próprio ser humano ou a consciência ou a realidade humana. Para este trabalho de entendimento do corpo existencial, pensamos que a via mais excelente, senão a única, para compreender a extensão do contato do fisioterapeuta com o corpo sofrente, será compreender o corpo como sujeito. Portanto, estamos nos posicionando junto a um homem que não surge antes da história; pelo contrário, é produto histórico-ideológico-linguístico4. Quando o fisioterapeuta se encontra com um corpo acaba por se relacionar com uma liberdade viva e é com isto que terá de se haver entremeio a técnica e a angústia existencial; é o homem constituído de discurso – histórico, inconsciente – sua essência é linguagem. Atravessado pela língua, esse sujeito chega ao médico – em nosso caso o fisioterapeuta – com uma corporalidade que é já-sempre linguagem – a essência da liberdade.

 
Até aqui fizemos uma elipse, juntando muitas noções – algumas contraditórias. Além disso, pouco andamos com relação as noções já alinhadas nos outros textos que antecedem este. Estamos conscientes disto e pretendemos retomá-las brevemente. Por enquanto, gostaríamos de reter o seguinte, na forma de uma questão: ganhamos ou perdemos nos atendo a um conceito histórico de corpo e sujeito? Quais as consequências clínicas – psicológicas e médicas – da abordagem a um sujeito que é já-sempre produto da discursivização da carne? Aguardemos…
 

1 Noção proposta por M. Merleau-Ponty em seu Fenomenologia da percepção (Editora Martins Fontes 1999).

2Inocência relativa apenas ao sujeito daquela corporeidade, pois que a carne já está administrada pelo estado, dirigida pela parentagem, com nome próprio mesmo antes de ser um feto. Isso, apenas para não dizermos da encarnação pré-histórica de fantasias parentais antes mesmo da fecundação. Podemos, neste caso, falar em reencarnação de um ser virtual, antes mesmo de um ser atrelado à carne – um sujeito, vir ao mundo.

3Estamos aqui trazendo ao diálogo a fórmula Athusseriana: O indivíduo é interpelado em sujeito pela ideologia. Ver em L. Althusser (Aparelhos ideológicos de estado, Editora)

4Paul Henry “Sujeito, sentido, origem”. In: Discurso fundador Eni Orlandi(Org.).

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Levi Leonel de Souza