O quebra-cabeça da felicidade


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Há alguns dias, tive com alguns amigos uma discussão que começou a partir deste vídeo, que mostra como os distúrbios psiquiátricos são banalizados pelo marketing das indústrias de medicamentos. Essa banalização consiste, entre outras coisas, como declara um dos entrevistados, em garantir o maior número de consumidores possível para as drogas psiquiátricas, convencendo pessoas saudáveis de que elas necessitam dessas drogas para terem uma vida mais satisfatória. E as indústrias farmacêuticas disseminam “informações” – na verdade, propagandas disfarçadas – sobre os sintomas das doenças e as drogas com poder de “curá-las”. Jornais, TVs, revistas, livros, todas as mídias entram no ciclo.

O vídeo fala sobre vários transtornos e medicamentos, mas a conversa acabou se concentrando na depressão, talvez por ser o transtorno mais comumente diagnosticado e também o mais “trabalhado” pela mídia. Além, é claro, de praticamente todos nós conhecermos alguém que já foi diagnosticado, correta ou incorretamente, como deprimido.

É claro que existem casos em que o medicamento deve ser prescrito para tratar esses distúrbios. Antidepressivos, por exemplo, que agem diretamente sobre a resposta da serotonina no cérebro, são necessários para pacientes que têm problemas no equilíbrio desse neurotransmissor. Essas pessoas sofrem e enfrentam uma trajetória que vai do diagnóstico difícil ao tratamento medicamentoso complexo, envolvendo a descoberta de dosagens e drogas adequadas, diversas recaídas, crises, sofrimento, preconceito, a alteração da química cerebral e a convivência com incapacidades temporárias de trabalhar e angústias.

Mas e as pessoas que não necessitam deles e os consomem? Aquilo que muitas vezes é diagnosticado como depressão é também uma condição da subjetividade, revelam que o modo de vida predominante não satisfaz a todos nem responde aos questionamentos e necessidades de todos os indivíduos. Pessoas que não precisam de medicamentos, mas são alvo do marketing das empresas farmacêuticas, são transformadas em engrenagens do sistema que gera lucratividade para o capital. Esse fenômeno nos diz algo sobre nossas relações sociais contemporâneas.

Você é um depressivo, mas precisa (e pode) ser feliz
Uma das questões que me parece clara é que na contemporaneidade pessoas estão tão vulneráveis, sobrevivendo em um ambiente de tamanha insegurança e inconsistência das relações (aspectos que Zygmunt Bauman descreve de maneira bem acessível em seus livros) que se tornam alvos fáceis desse diagnóstico enviesado.

Quando a sociedade indica a um indivíduo que sofre de insônia, fadiga, tristeza, vontade de se isolar que ele é um depressivo e precisa curar-se, lhe oferece muito mais do que um diagnóstico. Oferece um olhar e uma demanda precisa, direta, pontual. Isso é quase um conforto para todas as dificuldades que se acumulam na vida cotidiana: essa demanda dá ao indivíduo uma história, um ponto de partida, uma meta de chegada, uma narrativa, um desejo a ser realizado, com o aval de todos a seu redor, uma folga das incertezas, da angústia.

Essa demanda da sociedade chega ao indivíduo pela mídia, pela cultura, pela rede de relações. Quando um colega, um texto ou um programa de TV apresentam “inocentemente” e “na tentativa de ajudar quem sofre” os sintomas e soluções de um transtorno depressivo, estão reproduzindo a ideologia de todo um sistema de dominações, coerções e poderes das relações sociais estabelecidas.

Esse sistema é sustentado por diversos valores, entre eles o da felicidade como a condição natural e positiva dos indivíduos.
Segundo autores como Pascal Bruckner (A Euforia Perpétua – Ensaio sobre o dever de felicidade) e Gilles Lipovetsky (Felicidade Paradoxal), nas sociedades ocidentais, a felicidade e a busca do bem-estar em tempo integral começaram a ser construídas como pilares dos projetos de vida individuais a partir da segunda metade do século 20. Pouco depois, nos anos 1970, a indústria farmacêutica iniciou pesquisas científicas sistemáticas sobre drogas capazes de influenciar o humor, estabilizar e controlar suas variações.

Esses dois fatos – felicidade como um dever e alegria ao alcance de um comprimido – contribuem para uma construção simbólica em que o desprazer não tem espaço e a frustração e o sofrimento são considerados problemas a serem resolvidos, controlados e melhorados o mais rápido possível. A dor emocional, mesmo as mais justificáveis como a decorrente da perda de uma pessoa amada, a destruição de sonhos e projetos de vida, não cabe mais como experiência existencial. Razão e ciência estão aí ao seu dispor, a vida é curta passa rápido demais, você precisa dar conta de excesso de trabalho, estresse e outras preocupações, não há tempo a perder com questões existenciais, expressão da sua subjetividade ou mesmo de seu luto. É preciso ser feliz. Ontem, agora e amanhã. Mas quem dá conta de tanto tempo e tanta felicidade sem uma pílula?

Ser feliz é produzir e consumir
Sob a influência das numerosas pesquisas científicas, nossas emoções mais simples se transformam em sintomas de inadequação a nosso tempo e lugar.  É assim que tristeza que dura mais do que um número arbitrário de dias se transforma logo em depressão, ansiedade se torna hiperatividade, isolamento e rompimento de laços sociais viram fobia social…

Em uma sociedade em que a felicidade é a meta absoluta, é fácil perceber que quem não é alegre, realizado, sorridente, produtivo, bem disposto, sempre de bem com a vida e expansivo perde seu espaço entre os normais e se torna logo um doente. É para essas pessoas que a indústria farmacêutica tem a solução, só muda o nome impresso na caixinha.

Em outras palavras, os medicamentos são também pílulas de produzir conformismo e adaptação. As pessoas que se sentem indispostas, infelizes, incomodadas com o que lhe mundo lhes oferece são vistas como desajustadas e a mensagem que recebem é: o problema não pode estar na lógica dominante, o problema está em você, sofra, fique de fora da “festa”, ou tome um antidepressivo para se encaixar. Para garantir que faça a opção “correta” – isto é, aquela que gera lucro e reproduz o capital e sua ideologia – as indústrias farmacêuticas investem milhões de dólares prometendo que os medicamentos podem “trazê-las de volta” a “normalidade” depois de 15 dias de consumo contínuo de acordo com a prescrição médica.

Sem custos, com lucros
“Normalidade” é uma palavra repleta de carga simbólica. Em uma sociedade qualquer, pessoas “normais” são aquelas adaptadas às regras, sobre as quais a coerção e os valores dominantes operam com perfeição, sem falhas dignas de nota. No caso das sociedades capitalistas, as pessoas que geram menos custos ao capital e mais dão retorno a ele, ou seja: os normais são os trabalhadores que funcionam como um relógio, não faltam ao trabalho por licenças médicas, não ficam meses utilizando o seguro saúde, não têm variações de humor que reduzam sua produtividade e estejam em condições de obter o máximo prazer no consumo de produtos e serviços em abundância.

Na sociedade capitalista contemporânea, todas essas contas são feitas. Pessoas que produzem pouco custam muito, performances abaixo da média custam caro, desprazer constante emperra a máquina. Não há lugar para nada disso no processo produtivo. Em outras palavras, mostra-se “anormal” e “inadaptado” é um passo para a exclusão do espaço mais essencial que você pode ocupar: uma vaga no mercado de trabalho.

Ao mesmo tempo, pessoas que produzem e estão adaptadas à lógica do capital têm acesso a uma de suas maravilhas: o acesso a um mercado de experiências de vida, não apenas a bens materiais, em que são vendidas emoções fortes, aventura, a festa de casamento impecável e também, por que não, a transformação de sua agonia em alegria com uma droga.

Diante do “dever de felicidade”, bela expressão de Bruckner, o depressivo – seja ele o doente, seja ele apenas alguém que eventualmente sofre com intensidade e sem mascarar a dor – é também uma ameaça, um incômodo. Ele é a prova viva da inviabilidade do projeto de vida que norteia a sociabilidade contemporânea. Ele revela que há, sim, tristeza, angústia, infelicidade e que a própria exaltação desmedida do prazer e do bem-estar são sintomas de que a sociedade está mal com suas contradições. Os depressivos nos dizem que o quebra-cabeça da felicidade permanente nunca poderá ser montado por inteiro. Mas ninguém quer ouvir isso.
 

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Beauvoiriana (aka Literariamente)