Onde vivem os monstros contemporâneos?


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“Me alimente mulher! Desça daí Max, não me envergonhe, saí já daí, agora! Grraaauuurrr! Vou te devorar…Ah! Você me mordeu! Está descontrolado! Não… Não é minha culpa (…)” (Trecho em que Max veste a sua fantasia de lobo no quarto e sai uivando junto a sua mãe no filme “Onde vivem os monstros”).

Fazer uma análise contemporânea sobre a monstruosidade é pretensão para qualquer um que já viveu os dois lados da maldade humana. Não quero discutir a fatalidade das fábulas infantis ou do bandido que se faz querido como o mocinho, mas a maldade que se faz notória, freqüente, motivada, com adorno platônico, justificada e cheia de excelentes motivos. Diria a maldade “além do bem e do mal” ou aquela que precisa achar o caminho de volta, mas acompanhada.

Assim, penso que toda monstruosidade é uma confissão que fere a própria imagem, de forma dominadora e, talvez, até masculina. Penaliza até quem mais se ama, pois poderia ser uma acepção do equívoco de que para sobreviver temos que ser fortes. Sem divagações, mas  poderia resignar-se e se tornar cúmplice passivo por meio dos nossos desejos, dos nossos vícios, das nossas vaidades, dos nossos ciúmes ou dos nossos medos. Ou poderia ser como Ana Carolina canta: (…) Há quem acredite em milagres. Há quem cometa maldades. Há quem não saiba dizer a verdade (…)”.
Vejo que os nossos monstros tornam-se cada vez mais presentes e vivos. Consigo enxergá-los na estadia dos meus sentimentos. Diria que sinto esses monstros me engolirem  e, claro que, as vezes discordo dos seus agravos e facetas, mas não tenho como  expulsá-los.
Esse mostro não precisa ser Frankenstein, Hitler, Stalin, Mussolini, Pinochet, Mao Tsé-Tung,  Saddam Hussein, Jack o Estripador, Jason do Sexta-Feira 13 ou o ex-goleiro Bruno,  mas pode ser aquele vizinho que dorme pensando sobre o que vai falar para o síndico, aquele colega de trabalho que sonha com o cargo de terceiro, aquele cunhado que ridiculariza as piadas, o colega da academia que representa  a malícia do esforço repetitivo  ou o silêncio desaprovador de quem deveria opinar, mas se cala para não se comprometer. Talvez seja apenas o contraponto do Dr. House.
Aliás, vejo os monstros na frieza dos veredictos, no juízo de valor das iniciativas que são desacreditadas e morrem antes de serem intentadas, na preparação para ridicularizar a proposta alheia ou quem sabe no olhar obstruído frente às conquistas pessoais.  Vejo-os na ausência de explicação ou nas mentiras para suportar a convivência. Talvez no olhar distante quando a conversa não agrada ou nas poucas palavras quando existe a emergência na despedida.  Vejo os seus sinais nos desfechos a porta fechada e na ironia  das usurpação do sucesso alheio. Vejo-os até na saída sem despedida.

Quando penso nos monstros modernos,  percebo não a intensidade da maldade, mas a sua banalização ou métodos adequados para o fracasso dos laços afetivos. Penso no próprio veneno que validou a serpente de Adão como o fruto desde o princípio.  Nem incito pensar que sempre as coisas foram dessa forma, mas acredito que o Código de Hamurabi se faz valer quando o monstro passou agora ser qualquer um, afinal não é desumano ser insensível ou conviver com a ausência de humanidade ou frieza. Prefere-se o fim, o ultimato à vitória das diferenças.

Não tenho medo da maldade patológica ou mesmo da agressão verbal. Mas tenho medo da mentira, da indiferença, da amargura, da falta de perdão ou da intenção amoral. Tenho medo do blefe, do jogo, da política, do acordo ou da expectativa do sopro. Não tenho medo do veneno da cobra ou do escorpião, pois esse nunca disfarçou a sua intenção, mas tenho receio do veneno  humano de forma disfarçada. Tenho medo do mostro moderno.
Quem sabe na angústia de matar esse mostro que mora ao lado, seja necessário perder: a compaixão, a disposição no entendimento, a afabilidade, a paciência, a diligência e a humildade. Às vezes o enfrentamento de monstros diários nos leva ao sofrimento, ao desgosto, a frustração e ao desassossego, mas só, assim conseguimos representar o nosso obituário diário com um respeito ecumênico de que tudo deve ser assim como é.
Acredito que ninguém se torna ruim com o tempo, mas aperfeiçoa o que se é. Penso nessa questão como Veríssimo na crônica os Venenosos: “Pura maldade, só o veneno explica.” Logo, maldade não tem remédio e talvez nunca se cure, pois é amante dos sintomas e se fortalece com as alianças, diria que é como um bolo descoberto que não se incomoda com a chegada de novas formigas.
Nem sempre uma maldade pode ser apagada, mas sempre pode ser fortalecida. Maldade não depende de alfabetização e já é Nobel antecipado. Acredito que a mágoa, o rancor, a tristeza são nobres e compreensíveis, mas a maldade é indecifrável. Penso nela como aquela peça do quebra-cabeça que ninguém sabe onde vai dar.
Um dia ouvi uma frase sobre cachorros e nela se computava  que quando os cachorros amam eles amam até o fim, se odeiam, odeiam até o fim. Nessa relação não sobra espaço para a montanha russa de sentimentos e foi aí que aprendi separar os predadores dos que usavam apenas os mecanismos de defesa.
Penso agora que os animais não são monstros e corroboro  o trecho final do livro “A Menina que roubava livros”:  “Os seres humanos me assombram.” Hoje os monstros contemporâneos são muito mais inteligentes, muito mais reflexivos, muito menos indulgentes porque não se pode confiar na aparência e talvez exista um fundo falso, diferente dos leões, ursos e outros monstros. Não há incredulidade no reino animal, não há o enxergar pelas bordas e sua aproximação não traz excesso de esperança como os monstros modernos.
Quando penso nesses monstros, percebo que o duro não  é criar expectativa, o duro é não ver o fim da expectativa, é não conseguir lidar com o sonho desfeito, é findar um desejo.  O duro é tentar sobreviver com o fim do que nem era nascido. O duro é ver que a confiança não se fez verdade e que o mundo não é como a Aquarela de Toquinho. O duro é saber a que a verdade esteve sempre lá. E que qualquer desatenção, não precisa  ser a gota d’água.

Saber destruir a expectativa é algo difícil, mas para não virar um monstro moderno é necessário ser Peter Pan, olhando para a terra do nunca, como naquele tipo de brincadeira cujo propósito seja chegar a um  lugar onde não  se possa mais ser visto. E posso argumentar  que seja confortável lembrar Friedrich Nietzsche em “Além do Bem e do Mal”: “Quem combate monstruosidades deve cuidar para que não se torne um monstro. E se você olhar longamente para um abismo, o abismo também olha para dentro de você”.
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Luciana Santa Rita