Literatura Japonesa – Parte San – A Decapitação de Yukio Mishima


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Da última vez que estive por aqui cantei as graças de Jun´Ichiro Tanizaki. Hoje, vou dedicar minhas palavras a um sucessor digno de Tanizaki: Yukio Mishima. Escritor de renome, discípulo do nobelizado Kawabata Yasunari, Mishima foi o escritor-estrela do Japão, atingindo sucesso já na sua estréia e possuindo uma obra tão extensa quanto variada. Um currículo impressionante que, infelizmente, será talvez para sempre eclipsado pelo final infame de sua vida…

Yukio Mishima alcançou a celebridade bastante cedo em sua carreira. Aos 23 anos ele já era o consagrado autor de “Confissões de uma Máscara”, o relato de um jovem homossexual tentando fazer as pazes com a própria natureza em meio a uma sociedade machista e um relacionamente hetero frustrante. A tentação óbvia é traçar os paralelos entre a história do livro e a vida do próprio Mishima, cujas tendências homossexuais (assim como sua sensibilidade artística) foram fortemente coibidas pelo pai, militarzão linha-dura que destruía os manuscritos do filho por considerar literatura coisa de frutinha. Mas escritores são traiçoeiros… por mais que Mishima estivesse usando sua própria experiência para compôr “Confissões de uma Máscara” é difícil crer que um autor que mais tarde se provaria tão habilidoso se expôria de forma tão simplista. É em sua obra de maturidade, “O Templo do Pavilhão Dourado” que acredito que Mishima realmente entrega o jogo sobre sua natureza, e sobre a chama intestina que por fim o levou à morte.

“O Templo do Pavilhão Dourado” é coisinha merecedora de figurar em qualquer lista de melhores romances dos século XX. Baseado em um fato real, a história do romance segue a vida de Mizoguchi, um jovem monge e estudante que, no decorrer do livro, passa por um profundo processo de depauperação mental e social, que culmina com sua tentativa insana de atear fogo ao Pavilhão Dourado do Templo Kinkaku. Nesse romance é fácil perceber porque Mishima conquistara fama e admiração mundial, superando a barreira linguística que costuma limitar o alcance da literatura japonesa. Pertencente à geração dos escritores do pós-guerra, Mishima já falava por um Japão ocidentalizado e sob forte influência norte-americana. Embora seu conhecimento das tradições literárias japonesas fosse vasto, Mishima tentava integrá-la à tradição ocidental. A saga de Mizoguchi e o “Templo do Pavilhão Dourado”, apesar de estar fundamentada na história e na sociedade japonesa, é parente de sangue e estilisticamente muito próximo de outros romances psicológicos sobre a derrocada de anti-heróis tão ambiciosos quanto perturbados, como o Julien Sorel de “O Vermelho e o Negro” e o Raskolnikov de “Crime e Castigo”.

A coisa só se torna mais perturbadora qunado se percebe que o próprio Mishima era um desses protagonistas mal-fadados. Mishima em si era um personagem ficcional, talvez a mais elaborada obra do autor. O nome era ficção: criado para proteger o autor da perseguição do pai. A vida era ficção: apesar de homossexual, Mishima era casado, tinha filhos e frequentava bares gays apenas clandestinamente (não que na época houvesse muita opção…) Com o passar do tempo, Mishima foi polindo ainda mais sua persona pública, criando uma imagem de samurai moderno através de muita malhação, doutrinação sobre bushidô e auto-promoção (Incluindo umas fotos meio constrangedoras, posando semi-nu em poses de “guerreiro”… se bem que esse pode ser meu viés cultural. Homoerotismo tem papel diferente no Japão). No momento em que ele fundou o Tatenokai, ou Sociedade do Escudo, um clubinho de jovens estudantes conservadores regidos pelo código dos samurais e dedicados à adoração de Mishima, já dava pra desconfiar que a coisa estava indo um pouquinho longe demais e que não ia acabar bem…

(Aliás, vale lembrar, o próprio código de honra samurai a que Mishima e seus seguidores se submetiam e exortavam fielmente era ficção. Por mais que alguns nerds, jovens ansiosos e saudosistas românticos queiram acreditar no contrário, o bushidô nunca foi um código escrito ou algo que a ser levado muito a sério… Era mais como o código da cavalaria européia. Uma noção meio vaga, largamente embasada no senso comum da sociedade e inclusive reproduzindo todos seus preconceitos, do que seria certo ou errado. E que, assim como o código da cavalaria européia, servia mais para contos de fada do que para aplicação prática, e era frequentemente violado.)

Voltemos a Mizoguchi. O drama do “Templo do Pavilhão Dourado” está na atração mortal do jovem estudante pela beleza… é um sentimento meio singular e difícil de explicar, mas que está lá no corpo das sensações humanas, e talvez até mesmo no cerne da nossa capacidade de apreciação estética. É o que talvez Rilke definia como “a terrível beleza”: uma certa admiração destrutiva gerada pela consciência de uma relação direta entre beleza e morte. Nesse sentido, a lindura de algo é determinada pela sua efemeridade… para Mizoguchi, o Pavilhão Dourado, uma obra de portento estético inegável, só poderia ser alçado ao seu ápice de beleza e perfeição se fosse completamente arrasado. E, da mesma forma, o próprio Mizoguchi, que negligenciei em informar antes mas revelo agora que era troncho e gago, só se tornaria belo quando garantisse a própria destruição.

Não dá pra deixar de considerar a possibilidade que os meandros mentais que levaram Mizoguchi a seu ato final de desatino não tivessem eco no própro Mishima. Nunca será realmente possível desvendar o que realmente se passava pela cabeça de Yukio Mishima naquele dia feroz de novembro. Mas é possível que, em certa instância, ele estivesse engendrando o final apoteótico e dramático do romance de sua própria vida. Junto de seus mais fiéis seguidores do Tatenokai, essencialmente um grupo de crianças, ele invadiu um quartel das forças de defesa japonesas, tomou o oficial responsável como refém e tentou instigar uma quartelada que deveria culminar em um golpe de estado para instaurar um novo governo reacionário, tradicionalista e nos moldes do Império pré-guerra. Após o fracasso fragoroso de sua intentona, Mishima marchou para dentro do quartel onde deu início ao ritual de seppuku.

Uma coisa deve ser deixada clara: o seppuku é muito mais que um mero suicídio. Ritual extremamente elaborado, pra não dizer doloroso, o praticante do seppuku deve usar uma adaga para penetrar e então abrir em sentido horizontal o próprio ventre, feito que requer quantidade admirável de ânimo e força de vontade. Uma vez devidamente auto-eviscerado, o praticante do seppuku, que deve estara joelhado, inclina para frente e repousa sua cabeça no chão ou alguma superfície baixa. Ele então é decapitado por um golpe de espada, ministrado por algum servo fiel, ou amigo do peito. Mishima seguiu o roteiro à risca, o que não é de se espantar… Segundo todos os indícios, o homem vinha planejando a própria morte por quase um ano antes da tentativa de golpe de estado à unha. Sua quartelada não foi mais que o pretexto para a auto-imolação.

Assim como seu Mizoguchi, Mishima foi incapaz de resistir às pulsões destrutivas de sua sensibiliade artística. Metódica, ensaiada e cuidadosa, a Morte de Mishima foi quase uma performance, um entrechoque infeliz entre real e arte. Esse aspecto é tão aparente que, como vocês já devem ter percebido, é muito difícil falar da obra de Mishima sem mencionar seu desfecho trágico. (Mas também não vamos dramatizar demais: embora o aspecto artístico da coisa seja relevante e revelador, Mishima era claramente doido de comer cocô. Basta analisar o aspecto freudiano da coisa… No fim das contas Mishima se investiu da personalidade de um guerreiro clássico, um velho milico varonil e reaça… exatamente como seu pai, que tanto o oprimiu na infância. Um pouco de terapia teria feito maravilhas pelo japa.) Intrigante é que Mishima, que escreveu romances, contos, teatro, roteiros de cinema, ensaios e poesia, teve com o seppuku a oportunidade de escrever uma das mais peculiares manifestações da literatura japonesa: o jisei, poemas suicidas versando sobre o fim iminente. Dizer que sua obra estava completa é tentador, mas me soa indulgente demais.

 

About the author

Felipe Damorim

Felipe Damorim se formou em uma faculdade, e desistiu de outras duas. Editou livros, publicou contos, manteve blogs e dirigiu filmes. As pessoas dizem que gostaram de tudo, pelo menos na cara dele.