Uma política da singularidade


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Torquato Neto disse que “a tropicália é a medida mais justa do possível”. Em grande medida Torquato estava certo. A tropicália, que se consagra como movimento com o controverso nome tropicalismo, renovou o cenário estético brasileiro nos anos 60 e 70. Mas, mais do que uma renovação estética, a tropicália, envolvida em um movimento que acontecia no mundo inteiro, trazia consigo a possibilidade de alterar os modos de vida. Em 1968, na Argentina, Roberto Jacoby, o mesmo censurado pela Bienal de São Paulo deste ano, anunciava que a estética se dissolvia na vida social. Hélio Oiticica, no Brasil, anunciava que o espectador se tornaria participador. Caetano e sua gola rolê ou sua sunga vermelha, Gilberto Gil e suas roupas coloridas, inventavam uma nova moda, um novo modo, portanto. E isso não era pouco. 

Se pegarmos algumas declarações dos generais argentinos veremos que o medo maior estava em deturpar certa moral dos bons costumes. Luciano Benjamín Menéndez, general assassino condenado à prisão perpétua na Argentina, disse que os “terroristas marxistas” queriam modificar o “estilo de vida” da nação argentina. No Brasil, a censura era muito mais empreendida no campo moral que no político e acabaram sem diferença nenhuma. Basta ver a quantidade de palavrões que eram cortados nas peças e nos livros, e a censura à pornografia que era encarada pelo regime como revolucionária. O controle dos modos de vida era objeto de atenção redobrada e, não por acaso, a mesma tentativa de controle dos modos de vida reapareceu na campanha eleitoral de 2010 travestida de religiosidade, sua cara mais perversa. 

A insubordinação tropicalista estava justamente aí, em abrir as possibilidades para se alterar os modos de vida. O que, evidentemente, não implicava novas regras de conduta, ao contrário, tinha-se a ousadia de apostar na singularidade, ou seja, de cada um ser ao seu modo. Daí os parangolés de Oiticica não serem meras capas coloridas feitas para entreter as pessoas, mas sim a elevação das possibilidades de cada corpo a sua última potência. Cada sujeito poderia experimentá-la ao seu modo. Os exercícios experimentais de liberdade, para ficarmos na bela formulação de Mario Pedrosa, eram guiados pela busca da felicidade que – argumenta Oiticica – é o fim da arte, o seu ponto crucial.  Era em cada corpo, na reivindicação desejante de cada sujeito, enfim, na proposta de uma “prática de imaginação coletiva” que se elaborava certa política da singularidade. Por isso Torquato dizia que a Tropicália era “a medida mais justa do possível”. Essa reivindicação está no horizonte do possível, embora pareça improvável e impossível. Então, como fazer uma política fundamentada na singularidade? 

Glauber Rocha, em 1971, reformula sua Eztetyka que deixa de ser da fome e passa a ser do sonho. Os eventos de 1968 que, de fato, foram mais longe em suas reivindicações ultrapassando a idéia da fome como necessidade biológica, alteraram sua percepção. Em 1968, na França, aparece uma inscrição que ainda permeia o imaginário político, digamos, revolucionário: “seja realista, peça o impossível”. A verdade é que a revolução não aconteceu, mas o impossível foi se tornando cada vez mais possível. No Brasil dos últimos anos, por exemplo, são bem visíveis as mudanças econômicas e sociais. Ontem Dilma Rousseff, presidenta eleita, falava sobre o sonho e o possível: “Minha convicção de assumir a meta de erradicar a miséria vem, não de uma certeza teórica, mas da experiência viva do nosso governo, no qual uma imensa mobilidade social se realizou, tornando hoje possível um sonho que sempre pareceu impossível”. É muito significativa essa parte do discurso de Dilma que, por um lado, mostra que ainda é preciso falar em sonho e que ele mobiliza a política e, por outro, desmascara certa política feita no Brasil em que a impossibilidade tomava conta do imaginário, muito mais do que as possibilidades (e foi Lula quem começou a reverter essa lógica). 

Mas ainda ouvimos: “fizemos o que era possível”, e esse possível nem sempre é o bastante.  Mas isso não quer dizer que devemos voltar a 1968 e pedir o impossível. A única possibilidade que temos é o possível. À política, cabe, portanto, intensificar e disseminar os possíveis. E da política devemos exigir o possível aparentemente impossível. Não para ser do contra, mas para fazer valer a política. Para fazer as forças se movimentarem, para movimentar o desejo, o corpo que, longe da consciência, é sempre mais incisivo. Para que a política, uma política que faça jus a esse nome, como disse Viveiros de Castro, deixe de ser apenas uma prática burocrática, administrativa e de negociatas. Viveiros aposta na convivência entre o sonho e o possível. Essa é a melhor alternativa para desfazer o imaginário construído e modelado e fazer valer a imaginação, o sonho e o desejo. “É a própria imaginação que se faz corpo”, diz o filósofo italiano Emanuele Coccia, “isto porque sonhando existimos apenas porque somos capazes de imaginar, e somente nas formas que a imaginação é capaz de criar: é aquilo que imaginamos que nos dá nossa própria forma, e é o próprio fato de imaginarmos que assegura nossa existência”. 

O sonho, dizia Glauber em 71, é “a única coisa que não se pode proibir”. Eu acrescentaria que o sonho é a única coisa necessária para a política e é ele o que pode manter certa insubordinação tropicalista de outrora. Porque no sonho, explica Coccia, “o eu descobre que seus limites são os mesmos limites do mundo, e todo mundo está contido no eu e é recriado por ele”. Porque o sonho condensa e desloca, como dizia Freud; ele é singular porque individual e porque não existe inconsciente coletivo. Mas é apenas com o sonho, com os fragmentos imagéticos que se sonha, imagina e projeta-se para o mundo que surge a possibilidade de mobilizar uma coletividade. Porque o sonho tem a capacidade de multiplicar os possíveis. Porque o sonho é capaz de mudar nossos modos de vida. Brizola, em 1989, dizia que não podíamos deixar que liquidassem nossos sonhos. Essa foi uma das maiores lições políticas deixadas por ele. Ela serve para não esquecermos da base fundamental da política: o trânsito incessante entre o sonho e o possível. 

 

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Flávia Cera