Ronda Noturna By Marcos Schmidt / 12/12/2008 Share 0 Tweet Ou, de como a fotografia explicitou os dois principais problemas da pintura. Sempre quando vejo fotografias muito antigas, ou filmes do começo do século XX, tenho uma estranha sensação de que aquilo o que estou vendo é uma violação das leis do universo. Eu não deveria estar vendo o modo como uma pessoa de 100 anos atrás, que há muito já não existe, agia; como se vestia, como se movia, como fazia as mesmas coisas que fazemos hoje… É como se fosse tabu, um mandamento: “não saberás, nem verás nunca, o modo como um semelhante teu, que já é pó, caminhou e respirou sobre a terra”. É uma grande tolice, sou o primeiro a admitir. Porque essa sensação é fruto de uma ilusão, a de que uma fotografia é a única forma de captação absoluta, imparcial e legítima da realidade. Não é, até porque isso não existe. Foi por esta razão, aliás, que iniciei essa série de artigos sobre as relações entre a fotografia e a pintura com Edgar Degas. Como afirmei no artigo anterior, Degas talvez tenha sido o primeiro a perceber conscientemente que a visão nunca é objetiva, imparcial. Ela é, antes de tudo, uma organização do pensamento. E o mesmo se dá com a fotografia: constrói-se uma imagem segundo aquele que manipula o instrumento. Hoje, isso nos é claro. Quando dos inícios da fotografia, não era. Aqueles que negavam as possibilidades criativas da fotografia o faziam justamente por considerarem que ela era apenas uma técnica de captação do real, sem possibilidade de intervenção por parte do manipulador. Além disso, potencialmente, a fotografia permitia a reprodução ilimitada de uma mesma imagem. Isso ia de encontro à concepção da arte como objeto único, excepcional. Mas o que eu gostaria de destacar neste artigo é o fato de que a fotografia expôs como nunca antes os dois grandes problemas da pintura desde o Renascimento: a profundidade e o movimento. Ou, colocando em outras palavras, o problema central da pintura era: como se dá a tradução de uma realidade quadridimensional (considerando o tempo como uma das dimensões) para um meio bidimensional? A representação da profundidade na pintura já preocupava os artistas antes mesmo do Renascimento, mas somente nesse período desenvolveu-se uma forma de representá-la considerada “científica”, fiel à realidade: a perspectiva geométrica, também chamada de albertiana, em homenagem a Leon Battista Alberti, que foi um dos seus primeiros teóricos. Essa forma de representar a profundidade permaneceu inalterada no ocidente até o começo do século XX, quando finalmente passou a ser questionada pelos futuristas e pelos cubistas. O curioso é que, com a perspectiva geométrica, deu-se o mesmo fato que ocorreu com a fotografia séculos mais tarde: interpretou-se a inovação técnica como uma forma objetiva e imparcial de se capturar a realidade. No caso da perspectiva, o problema era ainda mais gritante, porque ela é uma convenção, e das mais artificiais. Entretanto, a partir do momento em que nos acostumamos a ela e aceitamos suas premissas, somos facilmente iludidos por esta convenção. Já a fotografia confrontou as idéias referentes à representação do movimento. É bastante conhecido o modo como as séries de fotografias homens e animais em movimento de Eadweard Muybridge impactou os artistas. Pela primeira vez era possível ver como se dava o movimento de um homem ou de um cavalo em cada fração de segundo. E viu-se como essas fotos contrariavam o senso comum, e também as representações do movimento tradicionalmente feitas na pintura e na escultura. Duchamp ficou particularmente impressionado com os estudos de Muybridge, e seu “Nu descendo uma escada” é uma resposta ao problema da representação do movimento. Ele afirmava que o movimento estava nos olhos do observador, e que esperava obter essa sensação através da decomposição formal do movimento: “Mostro composições estáticas usando direções estáticas para as várias posições ocupadas por uma forma em movimento sem tentar criar efeitos cinemáticos através da pintura”. Se avançarmos algumas décadas e chegarmos ao início do século XX veremos que o arcabouço da representação da realidade que estruturava a pintura e a escultura desde o Renascimento fora completamente destroçado pelas novas técnicas e novas teorias científicas que se sobrepunham numa velocidade inédita na história da humanidade. Agora, cabia aos artistas criarem novas formas de representação da realidade. Uma coisa, entretanto, ficava clara: a fotografia havia acabado com a ilusão de que havia um modo que fosse único, mais verdadeiro e mais fiel de se representar o real. Paul Virilio resume bem o verdadeiro significado disso num trecho de seu livro “The vision machine”: Ouvimos o suficiente sobre a morte de Deus, do homem e da arte desde o século XIX. O que realmente aconteceu foi simplesmente uma desintegração progressiva de uma fé na percepção construída na Idade Média, depois do animismo, baseada na unicidade da criação divina, a absoluta intimidade entre o universo e o Homem-Deus do cristianismo agostiniano, um mundo material que amava a si mesmo e contemplava a si mesmo no seu único Deus. No Ocidente, a morte de Deus e a morte da arte são indissolúveis, o grau zero de representação cumprindo a profecia verbalizada mil anos antes por Nicéforo, o Patriarca de Constantinopla, durante as disputas com os iconoclastas: “Se removermos a imagem, não apenas Cristo, mas todo o universo desaparecerá” Compartilhe isso:Clique para compartilhar no Twitter(abre em nova janela)Clique para compartilhar no Facebook(abre em nova janela)Compartilhe no Google+(abre em nova janela)MaisClique para compartilhar no LinkedIn(abre em nova janela)Clique para compartilhar no Tumblr(abre em nova janela)Clique para compartilhar no Pinterest(abre em nova janela)Clique para compartilhar no Telegram(abre em nova janela)Clique para compartilhar no WhatsApp(abre em nova janela)Clique para compartilhar no Skype(abre em nova janela) Relacionado