O remédio inócuo


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A obra de alguns artistas propaga-se pelo mesmo motivo que o cogumelo do sol faz sucesso: ambos são inócuos.

Dia desses li a respeito de um estudo feito sobre aqueles remédios inócuos (cogumelo do sol, cápsulas de barbatana de tubarão, etc) que são vendidos por telefone, e que tem uma enorme veiculação em programas populares.
A conclusão era curiosa: justamente por serem inócuos, estes medicamentos se propagam e são consumidos por mais tempo. Um remédio efetivo tem essa propagação reduzida pela própria eficiência. Como resolve efetivamente o problema, rapidamente é esquecido.
Já um medicamento que faça mal também tem seu uso suspenso rapidamente, e obviamente não sobrevive através do boca-a-boca.
Bom mesmo é o medicamento inútil, o que não faz nada. A pessoa toma, seu problema não melhora nem piora, e enquanto vai tomando, continua fazendo propaganda do remédio inofensivo.
Fiquei pensando se o mesmo fenômeno não ocorre nas artes: se artistas inócuos não teriam uma sobrevida maior do que o esperado justamente por serem inofensivos.
Naturalmente que a resposta é positiva. Dezenas de artistas confirmam essa teoria. Ezra Pound classifica os escritores em 6 níveis distintos de qualidade, que também acabam servindo para a classificação de artistas plásticos: inventores, mestres, diluidores, bons escritores sem qualidades salientes, beletristas e lançadores de moda.
O equivalente do cogumelo do sol na arte é o diluidor. A dose do inventor, e até mesmo a do mestre, pode ser muito forte para um certo público que não quer mais do que um belo quadro para colocar na parede ou uma escultura bonita que não atrapalhe o caminho e nem seja indecente. É nesse ponto que entra o diluidor, que coloca bastante água com açúcar e deixa aquilo o que era eventualmente amargo e duro de engolir bem docinho…
O primeiro, ou melhor, os primeiros diluidores que me vêm à cabeça são os irmãos Carracci. Fizeram um sucesso danado criando o melhor dos mundos do gosto médio: o desenho de Michelangelo devidamente emaciado pela cor e harmonia de Rafael. Não que seus trabalhos sejam ruins, especialmente os de Annibale Carraci, mas não acrescentam muito ao que já fora feito. E se pensarmos que Carracci era contemporâneo de Caravaggio, aí é que se compreende melhor o que significa essa diluição de que estou tratando.
O termo “diluidor” não é necessariamente pejorativo. Simplesmente indica que a obra de certos artistas não abre caminhos novos. Pode-se dizer isso da obra de um Correggio, de um Guido Reni, um Murillo.
O problema acontece quando um desses artistas intermediários é alçado à condição de mestre ou mesmo de inventor. Especialmente se isto ocorre em detrimento de algum outro artista maior.
O próprio tempo, na maior parte das vezes encarrega-se de corrigir essas distorções. Como ocorreu com Caravagio e Carraci.
Entretanto, o remédio inócuo propaga-se por muito tempo e sua lenda eventualmente converte-se em fato.
Como é o caso de Tarsila do Amaral. Sua obra, como já foi diversas vezes apontado, é uma diluição (e ruim) do trabalho de Léger. Mas, como as cápsulas de barbatana de tubarão, sua lenda se espalhou. Não haveria nada de mais nisso se outros artistas, tão ou mais importantes do que ela, não ficassem num injusto segundo plano por causa disso. A própria Anita Malfatti, cujo trabalho inicial é fantástico e extremamente corajoso, ficou situada historicamente sob a sombra da obra de Tarsila. Assim como uma enorme lista de grandes artistas, com obra muito mais contundente do que a de Tarsila, ficaram (e de certa forma continuam) numa espécie de zona secundária: Ismael Nery, Maria Martins, Goeldi, até mesmo Guignard.
Aí, também entra na equação o trabalho dos homens de letra. Quem dá a sorte de ter apologistas talentosos, se dá bem (já tratei desse assunto num texto anterior). São estes talentosos propagadores que conseguem, eventualmente, colocar artistas diluidores num patamar mais elevado.
Se isso não implicar no esquecimento de outros artistas importantes, beleza. É aquela coisa: o doente grave pode tomar cogumelo do sol, desde que faça o tratamento correto prescrito pelo médico. Mesmo que depois ele ache que foi curado pelo remedinho de mentira.

About the author

Marcos Schmidt

Marcos Schmidt é designer gráfico e ilustrador. Vive e trabalha na irremediável cidade de São Paulo.