Os delírios de pensar a terra: para ler “Périclès et Verdi”


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Deleuze-Châtelet

        Pode parecer paradoxal que Deleuze, que na década de oitenta já havia escrito os dois grossos volumes de Capitalismo e Esquizofrenia com Guattari, venha a ocupar-se, em 1988, de um racionalista como François Châtelet (1925-1985). Chamado pelo Collège International de Philosophie para compor a última das mesas redondas dedicadas à morte do amigo e filósofo da história, Deleuze encontra na recusa châteletiana de Deus e de toda transcendência um dos mais interessantes ateísmos tranqüilos depois de Nietzsche.

          Châtelet realiza seus estudos de Filosofia na Sorbonne, e ali entra em contato com Deleuze pela primeira vez, bem como com grupos da esquerda trotskista; tal contato será constituinte de sua projeção como filósofo da história bem assim como filósofo político. No pós-Maio de 1968, Châtelet passa a trabalhar juntamente com Michel Foucault e Gilles Deleuze na implantação do Departamento de Filosofia da Universidade de Vincennes (Paris-VIII), que Châtelet dirigirá por aproximadamente dez anos; em 1983, colaborará com a criação do Collége International de Philosophie, vindo a falecer em 1985.

          Isso seria suficiente para explicar o interesse de Deleuze pela filosofia de Châtelet. Foucault morrera em 1984; Châtelet, em 1985, e Deleuze parece, aos poucos, refazer a trajetória filosófica dos amigos e intercessores, seja como forma de conjurar sua morte, seja como modo de lhes render uma homenagem póstuma por sua ressonância na própria filosofia deleuziana.

          Contudo, para um filósofo para o qual a criação de cada conceito constitui um acontecimento absolutamente singular, como Deleuze, e para quem a literatura e a escritura poderiam funcionar como um relógio que adianta, outras explicações seriam igualmente plausíveis.

        Nesse sentido, não deve passar despercebido de que modo a noção foucaultiana de “dobra”, desenvolvida paralelamente na monografia sobre Foucault (1986), antecipa uma preocupação com o conceito de dobra em Le pli: Leibniz et le barroque (1988). Por outro lado, Deleuze é repetidamente apresentado como um historiador da filosofia incomum, que não acredita em recenseamentos conceituais, mas que engendra no seio da história da filosofia a diferença finalmente emancipada do conceito em geral, da abstração e das formas decaídas da identidade; isto é, a história da filosofia deleuziana responde ao chamado de recolocar sob uma forma nova, sob outras determinações, o ser do problemático – daí a marcante liberdade expressiva da filosofia deleuziana. 

Ainda que nos limitemos a falar de Deleuze como monografista, Périclès et Verdi é um texto frequentemente esquecido, reputado menor em sua bibliografia. Talvez por Châtelet não ter alcançado a celebridade de Foucault, ou p texto ter exatas vinte e oito páginas, o que constituiria mais um ensaio que propriamente uma monografia sobre a filosofia de Châtelet. Se a idéia de dobra, em Foucault, é tão importante a ponto de ter podido ser estendida e repensada a partir de Leibniz alguns anos mais tarde, talvez não fosse despropositado recuperar o Périclès et Verdi deleuziano a fim de estimar que sorte de antecipações o ensaio monográfico sobre Châtelet – com todas as peculiaridades de um Deleuze a fazer História da Filosofia – engendra.

 

Imanência, Potência, Razão

 Ao afirmar que, para Châtelet, ato e razão constituem o mesmo, Deleuze (1988, p. 09) indica a intranscendência singularizante do racionalismo châteletiano.  Assim como Nietzsche, Châtelet não pensa a existência ou a morte de Deus como um problema, mas, sim, como as condições para pensar os verdadeiros problemas. Contra as outrecuidances (presunções, pretensões, insolências) das transcendências, o pensamento de Châtelet é humilde e, portanto, terreno. Segundo Deleuze (1988, p. 07), “Jamais uma filosofia se instalara mais firmemente sobre um campo de imanência”. 

        A singularidade do racionalismo aristotélico de Châtelet pode ser estimada precisamente a partir das relações Potência-Ato; a recusa de Deus e de toda transcendência afasta o aristotelismo de Châtelet do tomismo, aproximando-o do que Deleuze chama de um certo “fascínio” pela Potência, pelo homem como potência e matéria.

A passagem da potência ao ato, a um ato que é a própria razão, não constitui uma faculdade, mas antes um processo, a atualização de uma potência ou a formação de uma matéria (Deleuze, 1988, p. 09). Criam-se processos de racionalização a cada vez que estabelecemos relações humanas com uma matéria qualquer. Eis o que faz com que o ato “enquanto relação” seja “sempre política” (Idem, loc. cit.).  A potência, por sua vez, constitui uma certa passividade, uma receptividade inumana imanente ao homem, um pathos indissociável do próprio ato: “exercido ou submetido, o poder não é apenas a atividade da existência social do homem sem ser também a passividade de sua existência natural” (Deleuze, 1988, p. 11).

        Châtelet reencontra em Marx os temas da Razão e de sua irracionalidade, e Deleuze afirma que a suposição de uma Razão pura constituiria, segundo Châtelet, uma impolidez metafísica, uma outrecuidance, isto é, para Châtelet, sinônimo de transcendência. É entre os gregos, e essencialmente na Atenas de Péricles, que Châtelet se encontraria com Foucault; Atenas, portanto, não significaria o advento de uma razão eterna, universal e teológica, mas “o acontecimento singular de uma racionalidade provisória, notável” (Deleuze, 1988, p. 17).

 

Universal, singular

         O racionalismo empírico e plural de Châtelet assenta-se em uma dupla negação do universal; primeiro, do universal como o que seria capaz de explicar qualquer coisa; segundo, a inexistência do universal como tal – só existiriam singularidades. Precisamente essas duas fórmulas “O universal nada explica; ao contrário, é ele quem deve ser explicado” e “o universal não existe, só há singularidades” terão ressonância mais tarde em Qu’est-ce que la philosophie (1991), livro que, como atestado por François Dosse (Gilles Deleuze e Félix Guattari, biografia cruzada, Artmed, 2010), fora majoritariamente escrito por Deleuze, embora tenha contado também com a assinatura de Félix Guattari. As quatro ilusões que envolvem o plano de imanência (Deleuze; Guattari, 1991, p. 50 e ss.) parecem mimetizar a recusa châteletiana dos universais. 

        Em Périclès et Verdi, Deleuze (1988, p. 19) conceitua: “A ‘singularidade’ não é o individual, é o caso, o acontecimento, o potencial, ou antes, a repartição de potenciais em uma dada matéria”; mesmo os indivíduos mais insignificantes, continua Deleuze, não passariam de “um tal campo de singularidades que não recebe seu nome próprio senão das operações que empreende sobre si e na vizinhança […]” (Idem, loc. cit). 

        Para Châtelet, os processos de atualização e singularização são chamados de “decisão”, em oposição aos universais da comunicação, da reflexão etc., que esboçam movimentos unicamente abstratos e, portanto, irreais. Produzir movimentos reais passa a ser a questão; atualizar os potenciais, decidir, racionalizar torna-se, então, singularizar. Sua filosofia passa a ser, assim, uma filosofia da decisão como movimento natural de singularização. 

        Tal produção material e molecular de movimento e singularização, Châtelet encontra na ópera de Giuseppe Verdi. Segundo Deleuze, a vizinhança musical faz recordar que a razão não possuiria uma função representativa, mas atualizadora das relações entre homem e matéria sonora, em que as qualidades sonoras e suas combinações tornam sensível toda a superfície do corpo.

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Murilo Duarte Costa Corrêa