F de Falso


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Tenho profunda simpatia pelos falsários da arte. Diria mesmo admiração. Um sujeito talentoso, metódico, observador, detalhista, engenhoso, sem vergonha, mentiroso e ousado.

Opinião oposta tem o circuito artístico. Para os envolvidos na engrenagem, o falsário desmascarado é pior e mais fedorento do que Satanás, Belzebu e Asmodeus juntos.

Acho que era Gombrich que afirmava que não existem artistas, existe arte. Com isso, ele quer reforçar a ideia de que devemos olhar cada obra, cada trabalho individualmente, se possível esquecendo a assinatura, ou grife, estampada nele.  E dificilmente fazemos isso. Amamos, desejamos, vivemos e morremos por uma marca grifada. Vale para roupa, para bolsa, para sapato, e para a arte.

Imagine-se que estamos diante de uma pintura que consideramos fantástica: um retrato de um rosto envelhecido, um rosto desigualmente iluminado, já que a luz é focada numa das bochechas do retratado, todo o resto da pintura estando mais ou menos numa penumbra. Percebemos o domínio que o pintor tem sobre o seu material: os pincéis, as tintas, o suporte. Tudo é utilizado para intensificar a ilusão de que não estamos diante de um pedaço de pano colorido, mas sim de que estamos diante de alguém que respira. Ficamos intrigados, mesmerizados.

Poderíamos parar por aí, mas não. Por algum motivo, é importante que classifiquemos o quadro como sendo um “Rembrandt”. E sua assinatura acalma nossos corações, é como se fora um punhadinho de ouro em pó coroando nosso momento de requintada apreciação artística.

E, no entanto, ficamos sabendo tempos depois que tal Rembrandt não é um Rembrandt, é um quadro pintado por um discípulo. Desaparece o punhadinho de ouro, a pintura agora nos parece menos fantástica e chegamos até a ver uns defeitos anatômicos que não víamos anteriormente.

Se apenas a decepção estética fosse a questão, não faria muita diferença. Seria um problema, se tanto, entre o apreciador e a obra. Posso considerar que o trabalho, mesmo tendo sido executado por outro, é tão bom quanto um Rembrandt legítimo, e continuo a gostar da pintura do mesmo modo. Importa a qualidade da obra, não a assinatura do artista.

Mas, para todo o restante do chamado circuito artístico, o bicho pega. E cheira mal também. Há um bocado de outras coisas envolvidas, e quase todas relacionadas ao dinheiro. Um Rembrandt vale milhões de dólares e atrai milhares de pessoas aos museus. Uma obra pintada por um discípulo vale uma fração disso e não atrai ninguém. Uma falsificação não vale nada e vai para a reserva técnica, se tanto. Daí a necessidade capital de se saber a autoria de uma obra, mesmo quando os dados são escassos ou inexistentes. Mais do que saber, o importante é confirmar a grife.

Se a obra for privada, a histeria interessada ganha mais sabor: colecionadores, galeristas, especialistas, marchands, intermediários e casas de leilões estarão todos interessados em confirmar que o Rembrandt é realmente um Rembrandt. Todos interessados em confirmar.

No início do texto, afirmei que o circuito artístico odeia o falsário desmascarado.

O que não é de bom tom se afirmar é que o circuito artístico ama o falsário. Desde que ele não seja descoberto.

Todos faturam grosso com a desova de obras falsificadas. O especialista que chancela o Rembrandt falso ganha sua comissão quando a obra é leiloada. O galerista ganha, o marchand ganha, o intermediário ganha, a casa de leilões ganha, todos ganham. Até o incauto (nem sempre) colecionador (ou museu), que despendeu a grana ganha com seu Rembrandt falso recém comprado: seu prestígio e sua vaidade crescem exponencialmente. Desde que nunca se descubra o falsário, nem a obra forjada.

A obra falsificada agita o mercado, faz o dinheiro circular, gera notícia na mídia, deixa a todos do mercado felizes como pinto no lixo.

Mas a casa não pode cair…

 

ps: para o curioso, mais informações no bom documentário Beltracchi – The art of forgery, disponível no Netflix. Ver também o fantástico F for fake, de Orson Welles.

About the author

Marcos Schmidt

Marcos Schmidt é designer gráfico e ilustrador. Vive e trabalha na irremediável cidade de São Paulo.