Psicogeografia


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O sujeito dispõe-se a sair de casa e percorrer aleatoriamente as ruas da cidade. Perder-se nelas, observar o despercebido e o habitual e deles retirar as camadas de indiferença para chegar aos extratos mais profundos e significativos. Daí o sujeito volta para casa e escreve, ou pinta, ou compõe, ou apenas medita sobre sua experiência de desbravador urbano.

Grosso modo, essa seria uma definição sucinta da psicogeografia, mais próxima daquela vertente desavergonhadamente apropriada por Guy Debord. Há diversas definições e diferentes abordagens, desde as mais conscientemente políticas até as mais próximas de um certo tipo de metafísica.

A psicogeografia é um desvio, uma deriva. Um desvio que revela um itinerário até então desconhecido. Ela é, nas palavras de Ivan Chtcheglov, um de seus primeiros teóricos, o análogo da psicanálise aplicado na totalidade. Errar a esmo pela cidade é o equivalente, para o dasein heideggeriano, ao fluxo de palavras que revela o inconsciente. Desvenda-se a urbe, e o próprio ser, caminhando através dela.

A ideia das possíveis psicogeografias origina-se do fato de que sentimos uma espécie de vibração relacionada aos locais nos quais habitamos, ou simplesmente passamos, e essa vibração sentida nos invade e ressoa. A definição e a origem de tal vibração é algo que me escapa, e imagino que num futuro próximo as neurociências e a biologia saberão exatamente qual é a composição de tal “vibração”, se é que ela será definida como tal. Não por acaso, diante de tanta vagueza na definição, alguém cravou que a psicogeografia “é a ficção científica do urbanismo”, e eu ainda sublinharia o termo ficção. Por enquanto, chamamos o fluxo de sensações que nos percorrem e de impressões que nos atravessam de “vibração do local”.

Quando cursava Arquitetura, uns colegas de classe e eu fizemos um trabalho/experimento relacionado à psicogeografia, ainda que na época nem soubéssemos do que se tratava. Por duas semanas nos dirigimos até uma praça central da minha cidade, a praça Afonso Pena, e ficávamos ali “nos encharcando” da atmosfera do lugar. Observávamos, tomávamos nota, fazíamos esboços, conversávamos com os frequentadores. Passadas as duas semanas, reunimos as nossas anotações, desenhos e impressões e fizemos um relatório. Das coisas que notamos, a que mais chamava a atenção era o fato de que ninguém utilizava a praça como “praça”, em sua definição mais ampla, ou seja, como espaço de convivência, troca de ideias e de recreação. Era um local de passagem (havia um terminal de ônibus ali perto), era local de trabalho para prostitutas de idade avançada[1] que esperavam pelos velhinhos que iam receber a aposentadoria ali perto, o que, por sua vez, atraía um número razoável de jovens punguistas que agiam em grupo (e por causa deles todos circulavam ainda mais acelerados e atentos), e de curiosa e intensa movimentação de loucos mansos e de outros nem tanto[2], que apareciam e desapareciam o tempo todo.

Dando uma volta no parafuso, percebíamos que o lugar por onde tantos passavam apressados era um depósito de prazeres entristecidos. Numa leitura sócio-política, a praça era local por onde circulavam trabalhadores e se acumulavam os deserdados do capitalismo, o lumpesinato sem perspectivas.

Pode isso ser chamado de psicogeografia? Pode, mas também pode ser apenas um minucioso exercício de observação. Não sei se extraímos algo de supostas camadas mais profundas. Na verdade, penso até o contrário: se encontramos algo, esse algo é sua superfície. Ela nos engana por ser móvel, mas ainda assim é superfície.

A vertente mística da psicogeografia procura por padrões de recorrência de acontecimentos semelhantes em determinados locais. E é tentador aplicar essa moldura em alguns lugares da cidade de São Paulo, por exemplo. A região do Anhangabaú é um prato cheio. Um vale por onde circulava um rio que era evitado pelos indígenas (o nome tupi supostamente significa “rio do diabo”, ou “água venenosa”). Incêndios nos prédios do entorno, crimes e assassinatos escabrosos, suicídios e o pacote todo de desgraças tem registro de acontecimento na região. Às vezes no mesmo lugar, como é o caso do edifício Joelma, construído no terreno da casa onde ocorreu o famigerado “crime do poço[3]”. Uma conhecida que trabalha no prédio e que é bastante cética afirma ouvir coisas estranhas de vez em quando, como descargas disparando sozinhas…

A Cidade é caótica, cheia de lugares de escuridão. Tem caminhos tranquilos e becos sem saída, e esses caminhos e becos penetram e se confundem em nossa mente, e no fim das contas não sabemos o que é o real e o que é o reflexo. No fundo, a psicogeografia, de natureza revolucionária ou mística, é uma tentativa de participar da construção da história de um lugar, conectar momentos como se fossem lugares num mapa, e possibilitar a orientação através desse mapa espaço-temporal.

Como sempre costumamos fazer, tentamos criar uma ordem onde ela talvez não exista.

 

[1] Havia um código para se identificar as prostitutas disponíveis: elas se sentavam sobre uma toalha ou um pedaço de plástico.

[2] Um desses se aproximou de mim e disse, de primeira: “Eu conheço o diabo: ele é verde.” E foi embora.

[3] Um maldoso poderia dizer que a má sina continua, já que ali encontra-se hoje um dos principais diretórios do PSDB.

About the author

Marcos Schmidt

Marcos Schmidt é designer gráfico e ilustrador. Vive e trabalha na irremediável cidade de São Paulo.