Um cinema do ordinário


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Para abrir esta coluna, buscamos alguma obra cinematográfica ficcional, que tenha sido realizada nos últimos dez anos, que reflita, de algum modo, assim como nos primeiros filmes dos Lumière, o cotidiano. Obviamente, tal obra, deveria abranger o tema de forma crítica e flexiva.

 

“O Pântano”, dirigido e roteirizado por Lucrecia Martel, encaixou como uma luva em tal proposta. Logicamente, para realizarmos uma reflexão básica sobre todos aspectos deste filme, teríamos que nos estender por mais algumas postagens. Como apresentado anteriormente, nosso foco aqui se dá apenas nas questões ordinárias do cotidiano.

Como diversos outros autores já discorreram sobre a obra em questão, relembrando como esta é trabalhada de forma primorosa na mise en scène, na montagem e em diversas outras etapas relativas à construção cinematográfica, nosso olhar aponta para os personagens, e como se fazem através de uma história do comum, do cotidiano, do banal. Seres que incorporam pensamentos, emoções e reações, atravessam uma narrativa do ordinário.

Sem realizarmos uma análise cena a cena, ou mesmo extremamente aprofundada, podemos levantar aspectos gerais e fundamentais para a apreciação de detalhes orquestrados na fundamentação emocional das personagens. Seriam estes baseados no viver diário, naquilo se passa despercebido, mas que estrutura até o nosso próprio cotidiano. Há uma exposição do ambiente e da fragilidade dos indivíduos, como barreiras que instigam o espectador a adentrar naquele universo. Lá se desenvolve o frágil, o incompreensível, o infantil, a passividade, o não conhecer-se, um vazio sentimental e a não redenção. As camadas emocionais são exploradas sem serem explicitadas.

Há significativos detalhes que recobrem toda a narrativa. Questões como possíveis desejos, acidentes que propiciam reencontros, perdas que atravessam os lares, diálogos estabelecidos pelo telefone, a fé católica e seus conflitos, as relações da imprensa com a sociedade, o céu nublado, os ambientes pouco iluminados, tiros que se ouve e não se vê, animais expostos, os pimentões vermelhos, o morro, cigarras, uma música, um barulho da porta de um carro e de passarinhos, as cores da Bolívia narradas ao telefone, os cabelos sujos de Momi, a bebida alcoólica, a embriaguês, o vidro sujo dos carros, as águas apodrecidas e os sonhos inalcançados. Tudo lá está colocado de forma que pareça superficialmente banal, porém, tudo é, na verdade, profundamente revelador.

Cada pequena pista comportamental e espacial revela um pouco sobre aqueles homens e mulheres, que são o que são e ponto. Em poucos se pode ver o desejo de mudança que, quando nasce, é alimentado e brutalmente podado. Indivíduos que se recobrem com um descaso e que passam por infortúnios naquela sua forma opaca de se viver.

 

Com cores repartidas, ou contos imaginários que alimentam mentes e amedrontam a infantilidade, suposições religiosas que acalentam e que congelam esperanças, estão estacionados perante a própria imagem ou fugitivos desta.

Fatores externos e internos que se retroalimentam são caminhos e apontam extensões daqueles seres. Testemunhas de uma trajetória sem redenção, sublimação, escândalos ou ocorrências extraordinárias, as personagens estão em tudo que as cercam, sejam as árvores, o vinho, a chuva, o sangue, os sons, a Santa, os humanos, os desejos, as águas, a opacidade, a morte, a tensão, os descuidos ou o passado. São eles consequência e causa de tudo que se mostra na imagem. Desaparecerão como os sons que os cercam. Brutos, firmes, intensos, cheios de significado, trazem suspeitas e incertezas, mas são, acima de tudo, temporários.

 

Obviamente cada espectador absorverá um ponto, cada questão poderá trazer uma leitura diversa, porém, buscamos aqui, apresentar um viés, uma abertura, um caminho para uma leitura possível. Não hesito em recomentar que se veja e reveja o filme, que, acima de qualquer rótulo, é uma criação cinematográfica promissora no quesito interpretação.

 

 

[na próxima postagem iremos

refletir um pouco sobre

a importâncida da

preservação de obras

cinematográficas.]

 

Até mais.

 

 

 

 

About the author

Patrícia Louzada dos Anjos

Com planos irrealizáveis desde 1983, possui o ser humano como foco central de suas atividades. É bacharel em comunicação social, com habilitação em cinema e vídeo, e especialista em comunicação digital. Escreve como vício e estuda por compulsão. Usa linux, comemorou seu casamento com um bolo de padaria e inventa estórias para sua filha comer.