Tempus fugiens By Gledson Sousa / Share 0 Tweet O artigo tenta estabelecer uma relação entre o mito de Atalanta e a vida contemporânea, criando uma metáfora em torno das imagens do mito; ao mesmo tempo, o artigo fala da liberdade, da conquista de si mesmo, do casamento entre vida e liberdade, essa desejada redenção do sujeito para a vida e da vida para o sujeito. Um livro do Alquimista alemão Michel Maier trata do mito de Atalanta, aquela jovem tão rápida quanto uma gazela que ninguém conseguia alcançar, sempre em fuga, sempre pronta a desaparecer, sempre inatingível. O livro é o Atalantas Fugiens, um dos mais conhecidos tratados dessa arte tão obscura, que é a alquimia. Mas não é sobre o livro que vamos falar. Na verdade nos interessa muito mais a imagem da Atalanta sempre em fuga, para a elaboração de uma metáfora, além das outras possíveis interpretações feita por Michel Maier e nem sei, num primeiro momento, se a metáfora que vamos criar vai ter ou não a ver com as imagens tão cara à alquimia. Porque a imagem de Atalanta casa bem, para mim, como metáfora da própria vida na época em que vivemos, esse algo inalcançável, sempre em curso, o qual não conseguimos parar, não conseguimos decifrar. A marca característica de nossa época atual tem sido justamente a celeridade, a falta de tempo, a ausência de sentidos para o que fazemos, a falta de vontade para fazermos algo novo. Há uma distância, ou um fosso, entre nossa interioridade e o mundo externo, entre aquilo que realizamos e aquilo que somos; esse abismo só revela o fato que na realidade não controlamos nossa vida; quer dizer, exercitamos pouco nossa liberdade, e não falo somente da nossa liberdade enquanto fato social e político, mas também como um fato interior, a possibilidade interior da escolha, a liberdade não como um afeto, mas como uma razão. No mito de Atalanta, ela, que foi criada por uma ursa, é uma linda jovem que nenhum homem conseguia vencer na corrida, corrida esta que era usada como prova e condição para quem quisesse casar com ela. Como ninguém a vencia, ela permanecia virgem e inacessível ao mundo comum e cotidiano. Ela estava sempre em fuga: a marca de Atalanta era a fuga do mundo. Então, como relacionar Atalanta com a vida contemporânea ? Justamente por que a vida atual é algo que não se deixa alcançar; melhor falando, que não conseguimos alcançar porque estamos alienados da nossa própria subjetividade, estamos alienados da relação mais íntima conosco mesmos, aquela relação que permite que o sujeito se compreenda como outro para poder assim refletir, como diria Nietzsche, com o pathos da distância, da maneira necessária para engendrar seu próprio destino. Não o extremo da racionalidade, de controlar a vida em seus mínimos detalhes, mas a racionalidade necessária e instrumental que permita ao indivíduo estabelecer metas e sentidos para aquilo que faz, que permita ao sujeito metaforizar a própria vida como se fosse uma nau a qual ele dirige para o mar que ele quer navegar. A impossibilidade dessa relação do indivíduo com ele mesmo é também conseqüência do fato de que nem temos tempo para tal, ou seja, não temos tempo para exercitar nossa interioridade: as estruturas sociais de agora são altamente violentas e nos aprisionam de uma maneira tal, nos enredam com seus mil tentáculos que não nos resta mais tempo para nada, a não ser vegetarmos, ou melhor, parasitarmos os sentidos alheios, no tempo e no espaço: desejamos outras épocas, outros espaços, desejamos ser outros seres, porque não conseguimos ser nós mesmos. O que foge de nós, nossa Atalanta, é o tempo. Aí poderíamos dizer: tempus fugiens. O tempo foge, escapa : o tempo é a sombra do sol que tentamos parar no relógio da praça, é a água que lentamente verte numa clepsidra, sem que consigamos pará-lo, sem que consigamos revertê-lo – para nós ele passa numa direção progressiva, num processo entrópico – cada vez que ele passa, esgotam-se as energias do nosso sistema, do que somos, do que fomos, do que um dia seríamos. Mas não devemos acreditar somente nesse contínuo esgotamento, nessa prisão sem grades da sociedade capitalista; assim como no mito, há saídas para outros lugares que não sejam abismos. Ainda no mito de Atalanta, somente um homem consegue vencê-la, e esse homem é Hipomenes; mas ele se utiliza de um estratagema para conseguir vencê-la: recebe de Afrodite a idéia de que pegue, no bosque que é a ela consagrado, três frutos dourados que ali brotam de uma árvore, e que durante a corrida, lance os frutos na estrada na frente de Atalanta; é o que ele faz: ao longo da corrida, alternadamente, ele lança os frutos dourados, e à medida em que Atalanta pára para pegá-los, ele consegue vencê-la e assim se casa com ela. O mito assim, mesmo que de uma maneira livre nós tenhamos nos apoderado de suas imagens sem querer dizer que esse é o seu sentido original – até porque enquanto mito ele pode ter mais de um sentido -, ainda nos ajuda para completar essa metáfora: ainda que a vida nos fuja pelos dedos, conseguimos pará-la quando lhe seduzimos com os frutos do sentido, mas esse sentido é uma conquista: nada nos é dado de graça. Traduzindo isso em termos de uma práxis possível, podemos dizer que há modos de resistência, tanto exteriores quanto interiores, a essa opressão silenciosa – silenciosa porque ela se articula em discursos tão sutis que as pessoas nem percebem que são oprimidas -, há maneiras de encararmos a vida em relações diferentes que nos permitam dominar-lhe o curso: podemos lutar por uma nova legislação do tempo público, onde as repartições públicas funcionem em horários alternados para que assim os cidadãos possam flexibilizar seu tempo pessoal ( há casos já na Europa, relatados no livro Reengenharia do Tempo de Rosiska Darcy), como podemos lutar também na esfera mais pessoal, íntima mesma, de resistirmos às imposições do mercado, que querem a todo custo impor-nos gostos e modos de vida que não correspondem ao que somos e ao que queremos. Porque os sentidos que a vida possa ter, além daqueles da esfera metafísica – para aqueles que acreditam na metafísica -, são sentidos que construímos, que atribuímos à vida, na medida em que exercitamos nossa verdadeira liberdade. Os frutos dourados são a interioridade conquistada, a racionalidade conquistada, a vontade conquistada; para conquistarmos esses valores temos que ter metavalores, ou, de certa maneira, uma metaconsciência que esteja dentro e , ao mesmo tempo, além do processo. Aí poderemos comemorar as bodas com a vida, ou melhor, as bodas da vida com a liberdade, aí poderemos dizer que somos sujeitos históricos, não somente da história social, mas também da nossa própria história, essa busca contínua pelo amor, essa corrida entre Atalanta e Hipomenes.