Transição da mortalidade

A redução das taxas de mortalidade foi a maior conquista social da história. O ser humano, desde seus primórdios, sempre travou uma luta exacerbada pela sobrevivência. O primeiro desafio colocado à sociedade sempre foi vencer a batalha pela vida e ampliá-la. Melhora-la foi e continua sendo um combate constante e eterno. O ser humano aprendeu a ludibriar a morte evitando os óbitos precoces e aumentando a sua sobrevida. A redução da mortalidade e o aumento da esperança de vida são conquistas históricas que merecem ser melhor compreendidas.

Antes da Revolução Industrial do século XVIII, a esperança de vida ao nascer no conjunto da população mundial estava em 27 anos. No século XIX houve uma melhora de cerca de 10% e a expectativa de vida chegou aos 30 anos em 1900. No século XX a humanidade começou a vencer a batalha contra as altas taxas de mortalidade. Neste período, a esperança de vida mais que dobrou, passando de 30 para 46 anos em 1950 e para 65 anos no ano 2000.

Este aumento de mais de 100% em cem anos nunca tinha acontecido na historia da humanidade e provavelmente nunca mais aconteça no futuro. Esta conquista se deve à transição epidemiológica que possibilitou uma grande redução da mortalidade por causas decorrentes de doenças infecciosas e parasitárias. Particularmente a mortalidade infantil sofreu um declínio extremamente acentuado no século XX. A Alemanha, por exemplo, tinha taxa de mortalidade infantil de 221 por mil no ano de 1890 e chegou à taxa de 5 por mil no ano 2000, representando uma queda de mais de 44 vezes em 110 anos (Knodel e Walle, 1979). Quedas da mortalidade infantil nesta proporção não vão acontecer novamente. Mesmo assim, as projeções indicam que a esperança de vida deve continuar aumentando, embora em ritmo mais lento.

Existem duas escolas principais para explicar a transição da mortalidade e, em ambas, os papeis da tecnologia e do bem-estar são centrais. Uma escola enfatiza a melhoria do padrão de vida da população e a contribuição positiva do desenvolvimento econômico. A outra enfatiza as contribuições da inovação médica, dos programas de saúde pública, do acesso ao saneamento básico e da melhoria da higiene pessoal. Nenhuma escola refuta categoricamente a outra. Aquela que enfoca o papel do desenvolvimento econômico reconhece a contribuição dos avanços da ciência médica no declínio da mortalidade, principalmente após se atingir um certo limiar do nível de renda. Aquela que enfoca o papel da inovação médica reconhece que o bem-estar e expectativa de vida estão diretamente relacionadas, porém com uma certa defasagem entre elas.

Os defensores do enfoque do desenvolvimento argumentam que a redução das doenças infecto-contagiosas (contaminação através do ar, água, mãos, alimentos, pele, solo, objetos e insetos vetores), nos países hoje desenvolvidos, ocorreu antes das grandes descobertas médicas. A contribuição central teria sido a elevação do bem-estar, representado pelas condições de trabalho, moradia e nutrição. McKeown, Record e Turner (1975) argumentam que a melhoria da nutrição teria tido a maior influência no declínio da mortalidade infantil e na elevação da esperança de vida na Inglaterra e no País de Gales. Mostram, também, a importância do efeito do crescimento da renda na redução da mortalidade nos Estados Unidos, antes mesmo dos avanços dos conhecimentos médicos. Somente numa fase posterior à elevação do padrão de vida, a medicina teria contribuído em grande escala para a redução da mortalidade.

Os defensores do enfoque médico argumentam que a redução da mortalidade ocorreu após uma série de inovações médicas, tais como a noção de assepsia (1844), os anestésicos introduzidos em meados do século XIX, os bactericidas e a imunologia introduzidos no último quartel desse mesmo século e os avanços da quimioterapia que se iniciam por volta de 1930. Preston e Nelson (1974) mostraram que as novas tecnologias médicas e de saúde pública revolucionaram os tratamentos e reduziram as doenças infectocontagiosas, mudando a estrutura da mortalidade não só nos países ocidentais.

Todavia, esses dois enfoques não são excludentes. Johansson e Mosk (1987) desenvolveram uma abordagem que busca integrá-los. Eles mostram que os defensores da primazia do desenvolvimento econômico e do bem-estar realçam o papel da resistência às doenças e os defensores da primazia das medidas de saúde pública realçam o papel da proteção às doenças. Com base nessas assertivas, os autores desenvolvem um enfoque que se baseia na Proteção/Resistência que se dá em três níveis: natural, comunitário e domiciliar. Dessa forma, eles buscam sintetizar a controvérsia sobre a transição da mortalidade, criando um esquema flexível que permite diferentes combinações de diferentes pesos para cada determinante da mortalidade. O modelo deixa claro que o aumento do bem-estar e as tecnologias médicas, sanitárias podem interagir para reduzir a mortalidade e aumentar a esperança de vida..

Portanto, independentemente da escola de pensamento, existe um consenso que a transição da mortalidade é um fenômeno geral e que representa uma grande conquista humana. A transição da mortalidade é um dos elementos centrais do avanço do processo civilizatório e que representa uma vitória da inteligência, da razão e da perfectibilidade humana, isto é, das idéias defendidas pelos pensadores iluministas. A redução da mortalidade infantil, da mortalidade materna e de outras causa evitáveis de falecimento é uma pré-condição para o desenvolvimento humano e o aumento da qualidade de vida das populações. Viver mais é um pré-requisito para se viver melhor.

Referencias em
ALVES, J.E.D. População, Bem-Estar e Tecnologia: Debate Histórico e Perspectivas. Revista Multiciência, Unicamp, Campinas, maio de 2006. Disponível em:
http://www.multiciencia.unicamp.br/artigos_06/a_02_6.pdf
http://www.multiciencia.unicamp.br/intro_06.htm

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José Eustáquio Diniz Alves