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Todo dia o sol levanta

Todo dia o sol levanta

Casinha bioconstruída entre as bananeiras

Estava organizando antigos textos para a coleção que está sendo preparada para meu novo livro e deparei-me com uma série de escritos sobre o cotidiano, entre a casa e o jardim. Nelas desfilam tatus-bolas, galos, lagartixas e uma série de personagens domésticos que circulavam pela nossa casa. Fiquei pensando o quanto minha vida mudou, nesses últimos anos.

Moro numa casinha bioconstruída, em um granjeamento rural. Em uma área relativamente longe da cidade, uma paisagem campestre, típica do interior de Minas, com vacas, cavalos, tatus, cobras, porcos-espinhos, quatis, tucanos, saracuras, jacus, enfim, uma fauna nativa abundante.

No entanto, toda essa fauna e flora exuberante não conseguem mais produzir efeitos sobre minha escrita diária. Essa abundante natureza que me cerca não é páreo para uma vida ligada à tirania do trabalho pela internet, que toma quase a totalidade do meu tempo e domina a experiência cotidiana.

De uma certa forma, poderia eu estar em um apartamento no subsolo que não faria diferença para minhas atividades cotidianas.

Exagero? Sem dúvida.

Hoje mesmo, já caminhei, já estive sob o céu azul, já passei entre bois e vacas, contemplei açudes, lagos e riachos, atravessei o pasto molhado de orvalho, senti o cheiro dos lírios do brejo. Tudo isso, inda agora.

Então, por que essas experiências não viram texto?

Por que passo o dia com a sensação de não sair da frente do computador, a resolver assuntos burocráticos e de sobrevivência?

Por que isso acontece, se agora mesmo levantarei daqui e irei até a horta escolher pelo aroma o chá que vou tomar?

O que anda se passando comigo para que a sensação de estar parada diante da tela seja superior àquela de estar na horta sentindo o cheiro da hortelã, do alecrim ou do manjericão?

Como poderia eu voltar a tornar o texto cotidiano mais simples, como um choro banal do cortar cebola ou a invasão de formigas na cozinha? Corriqueiro como o ataque de uma lacraia na madrugada?

E que texto legal seria aquele que narraria o dia em que, no escuro, deitada na cama, eu assistia um filme sobre alienígenas quando, de repente, uma rã grudou na tela do tablet?

Como poderia eu demorar-me mais nas pequenas coisas, sem deixar que as demandas da sobrevivência imperassem e anulassem qualquer outra experiência?

3 Comments
    Rafael Reinehr

    “demorar-se mais nas pequenas coisas” x “demandas da sobrevivência” claramente denota o que você valoriza. Se pudesse, faria muito muito mais “as coisas simples” e minimizaria o chato/programático/que traz sustento mas nem sempre tem significado… Ou será que a solução – pelo menos temporária – seja criar significado onde ele aparenta não estar? Preencher de sentido nossas ações por vezes é mais rápido do que mudar a estrutura da vida. Mas teu texto me fez refletir. Encontro em teu modo de vida muito do que já procurei e, em certa instância, ainda procuro. Será que ao “chegar lá” passaria por sentimentos parecidos com os teus?

      ninaveiga Post author

      Agradeço a leitura afetiva. Amor fati eis o sonho…

        Rafael Reinehr

        Amor fati, wu wei… Amar o destino, deixar fluir… (ou “ir com o fluxo”)

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