Cúpula sobre Planejamento Familiar

O governo do Reino Unido e a Fundação Bill and Melinda Gates estão organizando a “Cúpula sobre o Planejamento Familiar”,  prevista para julho de 2012. Alguns analistas consideram uma iniciativa super bem-vinda, pois, segundo a Organização Mundial de Saúde, existem 215 milhões de mulheres no mundo, especialmente em países pobres, sem acesso aos métodos contraceptivos e aos serviços mínimos de saúde reprodutiva.

Outros analistas ficam com o pé atrás achando que esta iniciativa pode marcar a volta do planejamento familiar coercitivo e pode ser uma forma de burlar as deliberações avançadas que ocorreram na Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento (CIPD), ocorrida na cidade do Cairo, em 1994.

De fato, o assunto é polêmico e possui várias facetas. A começar pelo termo “planejamento familiar” que é bastante difundido, mas não é o melhor termo, por exemplo, para definir as necessidades de contracepção e de sexo seguro entre jovens. Quanto se trata do livre exercício da sexualidade o termo família mais atrapalha do que ajuda. Diversas pessoas preferem o termo “planejamento reprodutivo”. Particularmente, prefiro os termos “auto determinação reprodutiva” e “regulação da fecundidade”.

A meta 5b dos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODMs) estabelece o seguinte: “Universalizar os serviços de saúde reprodutiva até 2015”. Evidentemente, para se atingir esta meta é preciso colocar ênfase no direito das mulheres. Mas, nas questões de reprodução, seria um equívoco deixar os homens de da discussão do tema e do processo de regulação da fecundidade e do livre exercício da sexualidade.

Por exemplo, a vasectomia (voluntária evidentemente) e a camisinha masculina são métodos contraceptivos (e de proteção contra doenças sexualmente transmissíveis neste último caso) masculinos e que requerem um trabalho de informação e de inclusão dos homens nos serviços de saúde reprodutiva.

Outra questão que deveria ser tratada na “Cúpula do Planejamento Familiar” é relativa concepção. No Brasil, na América Latina e em outros países do mundo onde há muita desigualdade social, é comum haver fecundidade indesejada por excesso e por falta. Os serviços de saúde sexual e reprodutiva devem buscar reduzir ao mínimo a fecundidade indesejada nos dois sentidos. As mulheres que estão tendo mais filhos do que desejam devem ter os meios de chegar ao número ideal de filhos (inclusive utilizando a esterilização e o aborto voluntário e seguro). Mas também as mulheres que estão tendo menos filhos do que desejam (seja por infertilidade ou falta de condições de conciliar trabalho e família) devem ter acesso aos serviços de fertilidade e políticas estatais de conciliação entre trabalho e familia, como parte do sistema de proteção social.

Quase todos os países do mundo assinaram o Plano de Ação da CIPD do Cairo e os ODMs, sendo que ambos falam em “universalizar o acesso à saúde reprodutiva” (o que inclui disponibilidade de métodos contraceptivos diversificados e não coercitivos). Efetivar esta meta requer o esforço dos governos, mas também à sociedade civil de forma ampla. Reduzir a gravidez indesejada é fundamental para a redução da mortalidade infantil e da mortalidade materna, outros objetivos da CIPD e dos ODMs. Portanto, a “Cúpula do Planejamento Familiar” deveria garantir o que já está estabelecido e consensuado a nível internacional nas respectivas Conferências que trataram do assunto, dando atenção, evidentemente, para as populações mais pobres do mundo, pois são aquelas que estão excluidas do mercado e sofrem com o chamado “efeito perverso”, que explica em parte a situação de “armadilha da pobreza”.

Abaixo segue uma Declaração da Sociedade Civil, assinada por redes femininistas e de direitos humanos, sobre a “Cúpula do Planejamento Familiar”:

“Declaração da Sociedade Civil
Os direitos devem estar no centro da Cúpula sobre o Planejamento Familiar

Nós, organizações da sociedade civil, que estamos trabalhando na promoção dos direitos humanos das mulheres e jovens, apelamos aos líderes mundiais, em vésperas da “Cúpula sobre o Planejamento Familiar”, organizada pelo governo do Reino Unido e pela Bill and Melinda Gates Foundation, para que não percam de vista a saúde e os direitos sexuais e reprodutivos em todos os seus esforços para satisfazer as necessidades de saúde reprodutiva, incluindo o planejamento familiar.

A informação e serviços de contracepção – o “planejamento familiar” – constituem uma parte essencial dos serviços de saúde de que as mulheres necessitam ao longo da vida. Todas as medidas para aumentar a procura de contraceptivos devem apoiar ativamente os esforços para melhorar uma saúde sexual e reprodutiva integrada e abrangente. Os contraceptivos devem ser fornecidos através dos serviços de cuidados de saúde primários, tendo em plena conta os direitos humanos das mulheres e as necessidades específicas das mulheres jovens e solteiras e outros grupos.

A nossa experiência, adquirida ao longo de décadas de trabalho em todo o mundo, ensinou-nos que as ações que não são norteadas pelos direitos humanos das mulheres – à saúde, à vida e à não discriminação, entre outros – podem ter consequências devastadoras. As políticas que aceitam ou, tacitamente toleram, a esterilização forçada, a oferta coercitiva de contraceptivos e a negação de serviços essenciais para as mulheres jovens, pobres e marginalizadas que deles necessitam no dia-a-dia, violaram e continuam a violar os direitos humanos das mulheres.

Há quase vinte anos, governos na Conferência Internacional sobre a População e o Desenvolvimento acordaram que o respeito pela autonomia reprodutiva das mulheres é a pedra angular das políticas demográficas. Qualquer retorno a programas de planejamento familiar coercivo, nos quais a qualidade dos cuidados e o consentimento informado são ignorados, seria ao mesmo tempo chocante e retrógrado. A Cúpula sobre o Planejamento Familiar deve impedir firmemente um retrocesso nos direitos das mulheres: a autonomia e o livre arbítrio das mulheres para decidir relativamente a questões relacionadas com a saúde sexual e reprodutiva, sem qualquer discriminação, coerção ou violência, devem ser protegidos em todas as circunstâncias.

A fim de melhorar o acesso aos contraceptivos, respeitando plenamente os direitos humanos das mulheres, apelamos aos governos, doadores e outros intervenientes que apoiam a Cúpula sobre o Planeamento Familiar para que:

–    Tomem todas as medidas possíveis para assegurar que esta iniciativa seja projetada tendo no seu cerne a qualidade dos cuidados e os direitos humanos, de modo que não sejam introduzidas medidas coercivas no fornecimento de contraceptivos;
–    Assegurem a participação significativa das mulheres, nomeadamente das jovens, em todas as fases do projeto e implementação do programa, de forma a assegurar que os serviços respondem às suas necessidades e a impedir violações dos direitos humanos;
–    Assegurem a integração do fornecimento de contraceptivos nos serviços de saúde sexual e reprodutiva já existentes, assim como nos que vão ser criados, e a oferta de um gama completa de métodos anticoncepcionais;
–    Desenhem e implementem um sistema de monitorização, avaliação e responsabilização para acompanhar e medir o seu impacto sobre os direitos das mulheres, à medida que esta iniciativa for sendo lançada, e proceder urgentemente às correções necessárias caso surjam indícios de violações;
–    Se comprometam a ultrapassar os obstáculos legais e políticos existentes que impeçam o acesso à informação e serviços de contracepção, sem os quais estes esforços iriam provavelmente ser ineficazes e agravar as disparidades no acesso aos mesmos.

Em 2012, é o mínimo que se deve esperar”.

Civil Society Declaration: Rights must be at the centre of the Family Planning Summit
Redes feministas e de Direitos Humanos

About the author

José Eustáquio Diniz Alves