Demografia By José Eustáquio Diniz Alves / Share 0 Tweet O antropocentrismo é uma concepção que coloca o ser humano no centro das atenções e as pessoas como as únicas detentoras plenas de direito. Poderia parecer uma manifestação natural, mas, evidentemente, é uma construção cultural que separa artificialmente o ser humano da natureza e opõe a humanidade às demais espécies do Planeta. O ser humano se tornou a medida autorreferente para todas as coisas. A demografia, assim como a economia e as demais ciências humanas, foi fortemente marcada pelo antropocentrismo, desde suas origens. Aliás, o antropocentrismo tem suas raízes mais profundas em antigos registros religiosos. O livro do Gênesis, do Velho Testamento, descreve que Deus criou o mundo em sete dias, sendo que no sexto dia, no cume da criação e antes do descanso do sétimo dia, Ele criou o ser humano (primeiro o homem e depois a mulher) à sua própria imagem e semelhança, ordenando: “Frutificai, multiplicai-vos, enchei a terra e sujeitai-a; dominai sobre os peixes do mar, sobre as aves do céu e sobre todos os animais que se arrastam sobre a terra”. Esta concepção teo-antropocêntrica de superioridade e dominação humana reinou na mente das pessoas e nas diversas instituições durante milênios, especialmente no hemisfério Ocidental, e ainda está presente no mundo contemporâneo. Mesmo nos dias atuais, o “crescei e multiplicai-vos” orienta, por exemplo, as reações religiosas e conservadoras contra o processo de universalização dos métodos contraceptivos modernos. Em reação ao mundo teocêntrico, o Empirismo e o Iluminismo – movimentos que surgiram depois da Renascença – buscaram combater os preconceitos, as superstições e a ordem social do antigo regime. Em vez de uma natureza incontrolável e caótica, passaram a estudar suas leis e entender seu funcionamento. Associavam o ideal do conhecimento científico com as mudanças sociais e políticas que poderiam propiciar o progresso da humanidade e construir o “paraíso na terra”. Os pensadores iluministas procuraram substituir o Deus onipresente e onipotente da religião e das superstições populares pela Deusa Razão. Em certo sentido, combateram o teocentrismo, mas não conseguiram superar o antropocentrismo, mantendo de forma artificial a oposição entre cultura e natureza, entre o cru e o cozido, a racionalidade e a irracionalidade. Dois expoentes do Iluminismo foram fundamentais para lançar as bases da demografia. No bojo da Revolução Francesa e no espírito da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (aprovada em 26/08/1789 pela Assembleia Constituinte), o marquês de Condorcet escreveu o livro Esquisse d’un tableau historique des progrès de l’esprit humain (1794) e William Godwin escreveu Enquiry concerning political justice, and its influence on general virtue and happiness (1793). Eles combateram o teocentrismo, mas não chegaram a questionar o antropocentrismo, pois estavam mais preocupados com o progresso material e cultural dos seres humanos, sem prestar a devida atenção aos direitos da natureza e das outras espécies. Estes autores defendiam as ideias de justiça, progresso, mudanças nas relações sociais (inclusive nas relações de gênero) e perfectibilidade humana, de certa forma antecipando, teoricamente, o fenômeno da Transição Demográfica. Ambos acreditavam que os avanços da educação e da ciência e os progressos tecnológicos iriam reduzir a pobreza e as taxas de mortalidade e aumentar a esperança de vida da população. As mesmas forças racionais que ajudariam a diminuir as taxas de mortalidade também possibilitariam o decréscimo das taxas de natalidade. Como disse Condorcet: o perigo de uma superpopulação estaria afastado, pois os casais humanos não iriam racionalmente “sobrecarregar a terra com seres inúteis e infelizes”. Godwin chegou a calcular a “capacidade de carga” do Planeta e era (assim com Adam Smith) muito otimista quanto aos efeitos positivos do crescimento populacional humano (eles não estavam muito preocupados com as outras espécies e com a biodiversidade). Foi para rebater estas concepções progressistas (e no seio da reação conservadora à Revolução Francesa) que Thomas Malthus publicou o seu panfleto anônimo, de 1798: An essay on the principle of population, as it affects the future improvement of society with remarks on the speculations of Mr. Godwin, Mr. Condorcet, and other writers. Nota-se, pelo próprio título do ensaio, que Malthus não pode ser considerado o pioneiro da demografia moderna, pois ele estava apenas rebatendo as ideias, estas sim pioneiras, de Condorcet e Godwin. E Malthus rebateu da pior maneira possível. O princípio de população malthusiano – “A população, quando não controlada, cresce numa progressão geométrica, e os meios de subsistência numa progressão aritmética” – não tem base histórica e nem estatística. Para fundamentar a sua “lei”, Malthus utilizou as taxas de crescimento da população dos Estados Unidos e as taxas de crescimento da produção de alimentos da Inglaterra. Este procedimento, elementarmente incorreto, não questionava os limites do Planeta e nem os direitos da biodiversidade, mas apenas dizia que, quaisquer que fossem os limites da natureza, o crescimento exponencial da população, mais cedo ou mais tarde, ultrapassaria a capacidade de produzir meios de subsistência. O objetivo era mostrar que o progresso do bem-estar humano e a redução da pobreza, objetivos básicos do iluminismo, seriam impossíveis diante da “miséria que permeia toda a lei da natureza”. Portanto, Malthus defendia que o controle da população fosse realizado via aumento das taxas de mortalidade, o que ele chamava de “freios positivos”, isto é, miséria, doenças e guerras. Se fosse hoje em dia, Malthus teria colocado as mudanças climáticas na sua lista de freios positivos e como um meio de aumentar a mortalidade dos pobres, pois o seu antropocentrismo era apenas para os ricos. Em termos morais, para Malthus, a privação e a necessidade eram uma escola de virtude e os trabalhadores somente sujeitar-se-iam às péssimas condições de trabalho se estivessem premidos pela falta de meios de subsistência. Evidentemente, Malthus subestimou de forma deliberada os progressos tecnológicos e os avanços da Revolução Industrial, quando previu o aumento linear dos meios de subsistência. Em relação ao crescimento exponencial da população e às altas taxas de fecundidade, Malthus, enquanto pastor da Igreja Anglicana, simplesmente era contra os métodos contraceptivos e o aborto. Após ser criticado por William Godwin, Malthus introduziu, na segunda versão do ensaio (desta vez assinada), de 1803, a noção de “freios preventivos”, isto é, restrições morais ao casamento precoce e adiamento da nupcialidade como forma de redução da parturição (a fecundidade marital continuaria natural, ou seja, sem a regulação humana). Malthus era contra o sexo e os filhos fora do casamento, sendo que a união conjugal (unicamente heterossexual) tinha função prioritariamente procriativa. Por tudo isso, Malthus rebateu as considerações de Condorcet e Godwin sobre os progressos da ciência e da tecnologia e sobre a redução das taxas de mortalidade e natalidade, para argumentar que o desenvolvimento humano seria impossível e que os trabalhadores deveriam receber apenas um salário de subsistência suficiente para manter o equilíbrio homeostático entre população e economia. Evidentemente, Malthus virou alvo das críticas dos pensadores progressistas e socialistas. Por exemplo, Karl Marx considerava que a sociedade capitalista é capaz de produzir meios de subsistência em progressão bem maior do que o crescimento demográfico. Para ele, o “excesso” de população não é fruto de leis naturais como afirmava Malthus, mas sim um subproduto da lógica do capital, que continuamente gera mudança qualitativa de sua composição orgânica, com o permanente acréscimo de sua parte constante (meios de produção) à custa da parte variável (força de trabalho). Este processo produz uma “superpopulação relativa” ou um “exército industrial de reserva”, o qual regula a oferta e a demanda de trabalhadores de tal forma que, pela pressão dos desempregados sobre a massa de trabalhadores ocupados, o salário pode manter-se ao nível de subsistência. O exército de reserva também proporciona a manutenção de um estoque humano à disposição do capital. Para Marx, bastava resolver o conflito final da luta de classes a favor do proletariado e todos os problemas do mundo seriam resolvidos, podendo haver desenvolvimento irrestrito das forças produtivas, sem restrições da natureza. Contra a “lei de população” de Malthus, Marx formulou uma prototeoria relativista e não falseável: “Todo modo histórico de produção tem suas leis próprias de população, válidas dentro de limites históricos”. O fato é que Marx não tinha teorias nem demográfica e nem ecológica. Além disso, o lema romântico utópico do comunismo – “De cada um, de acordo com suas habilidades, a cada um, de acordo com suas necessidades” – é fortemente antropocêntrico, como se as necessidades humanas pudessem ser satisfeitas sem restrições aos direitos da Terra e das demais espécies. Engels chegou a escrever um livro glorificando o domínio humano sobre a natureza. Por conta disso, as correntes ecossocialistas atuais tentam corrigir, ainda sem grande sucesso, o evolucionismo produtivista e a instrumentalização da natureza, ideias embutidas nos fundamentos das teorias marxistas. Porém, não é uma tarefa simples substituir o vermelho (do socialismo) pelo verde (da ecologia). Historicamente, a demografia nasceu e cresceu em torno do debate sobre população humana e desenvolvimento econômico. Este debate foi sintetizado no livro de Ansley Coale e Edgar Hoover Population growth and economic development in low-income countries, de 1958. A ideia apresentada no livro é a de que o processo do desenvolvimento econômico acontece de forma sincrônica com a transição demográfica, sendo que o desenvolvimento reduz as taxas de mortalidade e fecundidade e a transição demográfica altera a estrutura etária, diminuindo o ônus da dependência de crianças e jovens, o que favorece ao desenvolvimento. Porém, o livro alerta para a possibilidade de uma redução exógena das taxas de mortalidade nos países de baixa renda, sem uma queda das taxas de fecundidade e sem modificação endógena do processo de desenvolvimento econômico. Nestes casos, haveria uma situação de “armadilha da pobreza”, pois existiria a possibilidade de ocorrer uma aceleração do crescimento populacional juntamente com um aumento do ônus da dependência demográfica de crianças e jovens, o que poderia impedir a decolagem (take off) do desenvolvimento. Foi para resolver este problema que se avolumaram as recomendações neomalthusianas. Nota-se que, ao contrário de Malthus, os neomalthusianos propunham o freio da população por meio da limitação da fecundidade e não do aumento da mortalidade. Malthus achava que era impossível acabar com a pobreza. Os neomalthusianos acreditavam que seria possível acabar com a pobreza e avançar com o desenvolvimento econômico promovendo a transição da fecundidade. Este debate, típico das décadas de 1960 e 1970, esteve no centro das discussões da Conferência sobre População de Bucareste, em 1974. Os países ricos queriam promover o controle da natalidade, enquanto os países pobres queriam impulsionar o desenvolvimento. Venceram os segundos, com a seguinte palavra de ordem: “O desenvolvimento é o melhor contraceptivo”. Diversos países (e os fundamentalismos religiosos) aproveitaram o argumento para combater ou relaxar as políticas de acesso aos métodos de regulação da fecundidade. A China promoveu o desenvolvimento econômico juntamente com o controle da natalidade mais draconiano da história (a política de filho único), todavia, o resultado aparece em uma enorme degradação ambiental. Portanto, em qualquer cenário, o grande vencedor tem sido o antropocentrismo, pois o desenvolvimento das forças produtivas e o aumento do bem-estar da humanidade têm ocorrido em detrimento da natureza e das outras espécies. A Conferência de Meio Ambiente de Estocolmo, de 1972, já havia alertado sobre os limites do Planeta e a rápida degradação ambiental. Desde aquela época, já não era mais possível ignorar os danos ao meio ambiente. O resultado foi o surgimento do conceito de desenvolvimento sustentável, apresentado oficialmente pelo relatório Brundtland, de 1987: “O desenvolvimento que satisfaz as necessidades presentes, sem comprometer a capacidade das gerações futuras de suprir suas próprias necessidades”. Todavia, se o conceito de desenvolvimento sustentável foi um avanço no sentido de se preocupar com as futuras gerações humanas, não chegou a formular alternativas para a preservação das outras espécies e a conservação do Planeta. Por isto se diz que o desenvolvimento sustentável é um antropocentrismo intergeracional. Isto ficou claro quando a Cúpula do Rio (1992) aprovou a concepção antropogênica: “Os seres humanos estão no centro das preocupações para o desenvolvimento sustentável”. Desde a década de 1970, a ONU organiza conferências paralelas e desencontradas sobre “Meio ambiente” e “População e Desenvolvimento”. Em uma ela diz defender a natureza e na outra ela diz defender o desenvolvimento. Na Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento (CIPD), realizada no Cairo, em 1994, foi dito que o desenvolvimento é um direito dos povos e todas as pessoas possuem direitos reprodutivos para decidir livremente sobre o tamanho da prole. Enquanto os pessimista veêm cada nova pessoa como mais uma “boca” (consumidor) , os otimistas veêm como mais um “braço” (produtor). Embora essa idéias possam ser vistas sob diferentes óticas, não deixam de serem compatíveis com o pensamento de Ester Boserup e Julian Simon que viam o crescimento populacional como um indutor positivo do desenvolvimento econômico. Este último autor considera que quanto mais gente existir, melhor para o mundo, pois o que conta não são as bocas ou os braços, mas sim os cérebros (a inventividade humana). Embora poucas pessoas usem adequadamente os seus cérebros, Julian Simon serviu de inspiração para as políticas neoliberais do governo Ronald Reagan, sendo também um modelo teórico para os atuais céticos das mudanças climáticas, ou seja, daquelas pessoas que negam os problemas ambientais em nome do crescimento econômico e da continuidade da exploração dos combustíveis fósseis e da eterna dominação da natureza. Para estes positivistas e fundamentalistas de mercado, o aquecimento global ou não existe ou seria resolvido pela geoengenharia. Por tudo isto, Simon pode ser considerado o suprasumo do antropocentrismo, pois não leva em conta os impactos negativos das atividades humanas, inclusive o impacto negativo dos produtos de alguns dos cérebros mais “brilhantes” e das tecnologias mais sofisticas. Por estas e outras, a CIPD do Cairo nem tocou nos direitos reprodutivos das outras espécies e no direito de vida e reprodução da natureza. Não foram discutidas metas para a estabilização da economia e da população e o desenvolvimento continuou sendo visto como uma panacéia para resolver os problemas do mundo. Porém, cresce a percepção de que não pode haver desenvolvimento sustentável por meio do contínuo crescimento da população e da economia. São cada vez maiores os riscos de se ignorar os limites ambientais do Planeta. Pela metodologia da Pegada Ecológica, as atividades antrópicas já ultrapassaram em 50% a capacidade de regeneração da Terra. O fato é que o incremento do consumo, de um lado, e o aumento da população, de outro, estão contribuindo, mesmo que de forma diferenciada, para uma rápida degradação ambiental. Não existe consumo sem população e nem população sem consumo. Crescimento econômico e populacional ilimitado é uma equação impossível em um Planeta finito. A solução milagrosa do avanço tecnológico como forma de resolver os problemas do desenvolvimento e do meio ambiente também tem sido questionada, pois a maior eficiência microeconômica – produção de mais produtos com menos insumos – não significa menor demanda agregada. Ao contrário, o que tem acontecido nos últimos 200 anos é o aumento macroeconômico do consumo de energia e de recursos naturais à medida que cresce a eficiência produtiva. Isto é o que se chama de Paradoxo de Jevons, fenômeno observado pelo economista britânico William Jevons e que realça o fato de que, conforme as novas tecnologias conseguem elevar a eficiência de um dado recurso natural, seu uso total tende a aumentar ao invés de diminuir. O fetichismo da ciência e da tecnologia já havia sido questionado no início do século XIX. Enquanto os iluministas e, posteriormente, os positivistas apostaram todas as suas fichas no avanço científico e tecnológico para resolver os problemas da humanidade, os efeitos não antecipados da criatividade humana foram problematizados por ninguém menos do que Mary Shelley – filha de William Godwin e da feminista Mary Wollstonecraft –, que publicou, em 1818, o livro Frankenstein, the modern Prometheus. Na mitologia grega, Prometeu foi o herói que robou o fogo (a sabedoria) dos deuses para “iluminar” a humanidade e foi castigado por Zeus, que o amarrou a uma rocha enquanto uma águia comia o seu fígado dia após dia, durante a eternidade. No livro de Mary Shelley, Victor Frankenstein foi o médico (e químico) que desenvolveu uma tecnologia para dar vida a uma criatura, que ele mesmo renegou e que, involuntariamente, acabou causando grande infelicidade a todos ao seu redor. Na realidade, Frankenstein é uma metáfora sobre as consequências imprevistas dos avanços da ciência, da tecnologia e do desenvolvimento econômico. Um libelo precoce contra a tendência de hipostasiar o progresso. O livro de Mary Shelley serve de alerta quanto aos perigos da racionalidade humana – característica que define o homo sapiens e o diferencia dos animais irracionais –, mostrando que a inteligência pode ser razão de sucesso ou de fracasso. Ou os dois ao mesmo tempo. Foi também no século XIX que o economista inglês John Stuart Mill publicou, em 1848, o livro Principles of political economy, em que questiona o impacto do crescimento populacional e econômico sobre o meio ambiente e defende o “Estado Estacionário”, ou seja, o fim do crescimento econômico quantitativo e o estabelecimento de uma relação harmoniosa e qualitativa entre economia, população e meio ambiente. Stuart Mill deu um primeiro passo para a superação do antropocentrismo, ao deixar de engrossar o coro que vangloria o crescimento sem limites das forças produtivas. Hoje em dia, surge no debate não só a questão do Estado Estacionário, mas também a ideia do Decrescimento Econômico. Todavia, mesmo após 220 anos, não existe consenso na comunidade internacional de como tratar as questões de população, desenvolvimento e ambiente. Os ricos culpam os pobres pelos problemas da miséria e da degradação ambiental e os pobres culpam os privilégios dos ricos pela pauperização das pessoas e da natureza. Os países desenvolvidos, em geral, tendem a buscar soluções para o desenvolvimento nos avanços tecnológicos. Alguns países em desenvolvimento ainda repetem frases do tipo: “Não existe problema populacional, mas sim população com problema”, como se o impacto populacional fosse neutro e fosse possível resolver os problemas humanos apelando para uma exploração desregrada do meio ambiente. Por isto mesmo, no movimento ambientalista, a noção de crescimento econômico tem sido questionada e o conceito de desenvolvimento sustentável tem sido visto como um oximoro. Em pleno século XXI e às vésperas da Conferência Rio + 20, as posturas convencionais sobre a natureza ainda têm como base uma visão instrumental da utilização do conjunto de recursos ambientais disponíveis em função das pessoas. A modernidade avançou defendendo a ampliação dos direitos humanos, em suas diversas gerações: direitos políticos, civis, culturais, sociais, econômicos, direitos reprodutivos, etc. Mas a crise ecológica da modernidade decorre justamente da incapacidade de expandir estes direitos para outras espécies e para o Planeta. O atual modelo de desenvolvimento “marron” (poluidor), além de insustentável, pode fazer a humanidade caminhar rumo ao suicídio e ao ecocídio. Segundo dados de Angus Maddison, entre 1800 e 2011, a população mundial cresceu “aritmeticamente” sete vezes e a economia cresceu “geometricamente” cerca de 90 vezes, mostrando que o otimismo de Condorcet e Godwin estava mais próximo das tendências históricas do que o pessimismo de Malthus. Houve grande aumento da renda per capita mundial e a esperança de vida ao nascer passou de menos de 30 anos para cerca de 70 anos. Mas esta vitória humana teve como base a exploração de uma dádiva da natureza que forneceu imensas reservas de combustíveis fósseis para turbinar a economia. No processo produtivo, monstruosidades foram criadas, como imaginou Mary Shelley, em o Frankenstein (por exemplo, a bomba atômica). A produção de bens e serviços cresceu utilizando tecnologias (agro) tóxicas e queimando os recursos fósseis. Existem dúvidas quando será atingido o “Pico de Hubbert” (o início do declínio da produção da energia fóssil), mas o futuro pode não ser tão promissor quanto foi o passado, pois o custo acumulado da dívida com a natureza (o “pacto faustiano”) deverá ser pago no século XXI. Isto fica claro quando se observa que o aumento do padrão de consumo da humanidade deixou sinais de insustentabilidade ambiental por todos os lados: a erosão dos solos; desertificação de amplas áreas terrestres; desmatamento e aniquilamento de biomas; uso e abuso dos aquíferos; poluição e salinização das águas dos rios; e acidificação dos oceanos, com a consequente diminuição da fertilidade das fontes de vida. Mais da metade dos mangues e dos recifes de coral do mundo já foram destruídos. As atividades antrópicas trouxeram a maior extinção em massa da vida vegetal e animal da nossa história, com cerca de 30 mil espécies sendo extintas a cada ano. O ser humano mudou a química da terra e do céu, aumentando o dióxido de carbono na atmosfera e provocando o aquecimento global, com todas as consequências negativas deste processo sobre a biodiversidade. Diante do aumento da probabilidade de colapso ecológico, nos últimos anos têm havido tentativas de incorporar os direitos ambientais – de terceira geração – junto aos demais direitos humanos. Mas estes direitos ambientais giram em torno das pessoas e continuam tratando a natureza como objeto. A perspectiva antropocêntrica considera normal a mercantilização das espécies e da natureza, porém a Terra e os seres vivos deveriam possuir direitos intrínsecos, independentemente de suas utilidades para a população hegemônica. Cresce o movimento de advocacy em favor dos direitos dos seres sencientes e contra os maus tratos aos animais. As ciências humanas já abordaram, com maior ou menor profundidade, as discriminações provocadas pelo classismo, sexismo, escravismo, racismo, xenofobismo e homofobismo, mas pouco se falou do especismo, que é a discriminação existente com base nas desigualdades entre as espécies. Para tanto, o altruísmo ecológico deve substituir o egoísmo humano e a regulação dos “bens comuns” deve substituir a “tragédia dos comuns”. A água, por exemplo, deve ser vista como um bem comum, mas não só da humanidade e sim de todas as manifestações de vida do Planeta. A água limpa e pura deve inclusive ter o direito de continuar sendo limpa e pura e não ser instrumentalizada por uma ou outra espécie. Por tudo isto, a demografia não pode se preocupar apenas com o tamanho e o ritmo de crescimento da população humana. Também não basta conhecer as características de sexo e idade e a distribuição espacial das diversas subpopulações. Parafraseando Keynes, todo demógrafo vivo é escravo das ideias de algum demógrafo (ou economista) morto. Mas o grande desafio inovador da atualidade é romper com a perspectiva baseada em valores antropocêntricos e assumir uma mudança de paradigma, adotando uma postura voltada para os valores ecocêntricos (centralizados nos direitos da Terra, do conjunto das espécies e no respeito à biodiversidade). O ser humano não vive em um mundo à parte. Ao contrário, a humanidade ocupa cada vez mais espaço no Planeta e tem investido de maneira predatória contra todas as formas de vida ecossistêmicas da Terra. Darwin mostrou que as espécies vivas possuem um ancestral fóssil comum. Todas as espécies são parentes e vivem no mesmo lar. Não há justificativa para a dinâmica demográfica humana sufocar a dinâmica biológica e ecológica. A sustentabilidade deve estar baseada na convivência harmoniosa entre todos os seres vivos. A Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável, a Rio + 20, deveria enfrentar as ambiguidades do conceito de desenvolvimento sustentável, buscando abordar as questões demográficas e os direitos da Terra e dos animais, numa perspectiva ecológica e holística. Contudo, a preocupação com a Economia Verde não tem dado espaço para se pensar formas alternativas de organização social e de interação econômica que superem o modelo atual de produção e consumo. O colapso ecológico pode se tornar irreversível se a comunidade internacional não entrar em um acordo para reverter as tendências do aquecimento global e da depleção dos recursos naturais. O passo mais fundamental e necessário passa pelo rompimento com o antropocentrismo e a construção de um mundo justo e ecocêntrico. Referência: Este texto é uma versão um pouco ampliada do artigo:ALVES, J.E.D. Do antropocentrismo ao ecocentrismo: uma mudança de paradigma. In: MARTINE, George (Ed.) População e sustentabilidade na era das mudanças ambientais globais: contribuições para uma agenda brasileira. Belo Horizonte: ABEP, 2012.