Entrevistas By Le Penseur Sauvage / Share 0 Tweet O OPS! entrevista nesta semana Rudá Ricci, sociólogo, mestre em Ciências Políticas e Doutor em Ciências Sociais, que defende a importância de uma educação coletiva, em ambiente escolar. Vamos entender um pouco mais do seu ponto de vista e suas motivações. Como complemento a esta entrevista, entrevistamos também Cleber de Andrade Nunes, designer e auto-didata de Timóteo – MG que, juntamente com sua esposa Bernadeth decidiram educar seus filhos David e Jonatas em casa. OPS! – "O Art. 205. da Constituição brasileira diz: "A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho". Qual seu comentário acerca deste artigo? Rudá – Eu assessorei a Constituinte de 87, quando fazia parte da equipe técnica do CEDEC, centro de pesquisas sociológicas de São Paulo. A discussão que envolveu este tema foi a de garantir a educação como política pública voltada para o desenvolvimento social, superando o mero individualismo. Lembremos que este a constituinte envolveu um período de muitas reformas curriculares e encontros educacionais. Lembro-me da reforma em curso em São Paulo, Paraná, Bahia e Minas Gerais. Todos com ênfase muito nítida no controle social sobre as políticas públicas e formação social dos educandos. OPS! – O currículo tradicional das escolas passa por uma ampla variedade de conhecimentos: de mitose/meiose ao parnasianismo, da trigonometria à geografia econômica dos mais diferentes países, dos cálculos estequiométricos à história medieval. É razoável supor que os pais que praticam o homeschooling tenham o domínio de todas essas matérias, pelo menos com o mesmo nível de competência de cada um dos respectivos professores das matérias? O que o senhor pensa acerca do atual currículo escolar? Rudá – Em primeiro lugar, os pais não possuem formação técnica para lecionar e, portanto, não são obrigados a saber de temas tão específicos. É um grande retrocesso social acreditarmos que os pais devam assumir esta tarefa. Mesmo porque, o tempo de convivência familiar com filhos acima de 15 anos em capitais brasileiras é de, no máximo, 1h30 por dia. Há um forte debate nos EUA sobre a ampliação da noção de escola, assumindo, inclusive, a tarefa de formação moral que cabia às famílias justamente em virtude do tempo cada vez menor de convívio familiar. Foi tema de grande discussão a partir do governo Clinton. Em segundo lugar, não existe um único currículo nacional. Há muitos avanços e tentativas em vários municípios brasileiros, como adoção da Cidade das Crianças (movimento iniciado pelo psicólogo italiano Francesco Tonucci), o orçamento participativo criança e adolescente, escola em tempo integral e muitas outras. Todas são iniciativas que não haveria como uma família desenvolver, dado o complexo estrutural e curricular. A educação é um consórcio, baseado em múltiplos estímulos coletivos. E um currículo não pode ser visto como mera ação entre educando e educador. Fui professor de currículo no mestrado em educação. Há muitos estudos, desde o início do século passado, a respeito. Cito, como ilustração, os estudos de Sacristán, que indicam várias dimensões da elaboração e prática curriculares. OPS! – O senhor estaria de acordo se o MEC aplicasse um exame de conhecimentos aos pais que pretendam educar seus filhos em casa, de modo a certificar a proficiência deles em todas as matérias que deverão ensinar aos filhos? O que o senhor pensa acerca do MEC? Rudá – Não. Por vários motivos. As avaliações sistêmicas que temos no Brasil são insuficientes porque meramente classificatórias (baseadas num ranking de conhecimentos previamente concebidos, sem nenhuma ênfase na avaliação do processo de aprendizagem específico). Não se trata efetivamente de avaliação (do latim, a-avalere), mas mera verificação. Perceba que não se avalia o desenvolvimento moral ou relacionamento social, por exemplo, temas de destaque desde os estudos de Piaget, na década de 30 e aprofundados por Lawrence Kohlberg, para citar apenas dois autores. Mas também não acredito na educação em casa porque se trata de contradição com o conceito de educação formal. As famílias podem e devem educar seus filhos, mas não possuem conhecimento técnico para a educação formal. Mesmo que tivessem, educar é um ato coletivo, de desenvolvimento de tolerância entre diferentes. É preciso recuperar esta separação na história educacional, desde o fim dos preceptores, que educavam em casa. Trata-se de um projeto republicano, de construção da sociedade democrática. A educação em casa é um ato que reforça a ideologia da intimidade, tão bem retratada por Richard Sennett, onde ao invés de desenvolvermos o capital social, a confiança no coletivo, nos fechamos em copas em nosso espaço íntimo. Aliás, a breve experiência brasileira de educação domiciliar é fundamentada no sucesso dos filhos, reduzindo a educação à instrução para exames. Um empobrecimento que se confronta inclusive com a LDB. OPS! – Observa-se que alguns defensores do homeschooling evocam justificativas de cunho político para endossarem a prática, por entenderem que a educação feita na escola secular transmite aos alunos uma ideologia de esquerda, oposta aos valores liberais e cristãos. O senhor também percebe assim a educação que é feita nas escolas brasileiras? Se sim, esse pode ser um fator a influenciar uma pessoa para educar seus filhos em casa? Rudá – Seria um erro contrapor uma educação ideológica por outra. Seria um retrocesso em relação à educação laica e republicana. A educação formal não pode ser de esquerda, liberal ou religiosa. Seria justamente o desrespeito ao processo de construção de autonomia dos educandos. A opção ideológica é do educando. Este é justamente o problema do particularismo na concepção do homeschooling: ele não reduz a educação formal a uma opção individual, o que é um equívoco. Educar é socializar, e está intimamente vinculado aos valores universais e ao conhecimento de várias experiências e pensamentos humanos. Em outras palavras: a educação formal é um ato societário, não meramente comunitário e particularista. É um ato generoso, de contato com diferentes pensamentos. O comunitarismo é focado no interesse e valor específico do seu agrupamento local. Daí ter dificuldades para expressar valores universais. Há uma confusão conceitual razoável daqueles que defendem a educação limitada ao lar e à família, como se tivesse alguma ligação com o liberalismo ou o anarquismo. Os clássicos do liberalismo e anarquismo nunca sugeriram tal proposta. OPS! – A imensa maioria dos defensores do homeschooling é composta por evangélicos. Como o senhor explica essa preponderância de evangélicos entre os que advogam a prática? Como o senhor explica que o homeschooling tenha tão pouca adesão entre fiéis de outras crenças, como católicos? Rudá – Não saberia explicar. Sou sociólogo e teria que estudar estes valores. Há estudos sobre as práticas mais fortemente familiares e intimistas entre protestantes, como o estudo clássico de Max Weber, mas não me arriscaria a fazer tal projeção. Não acredito que tal opção tenha fundamento teológico. Acredito que seja fruto de grande decepção, frustração com a educação pública e grande ansiedade de alguns pais. O interessante é que não tomam este partido no que diz respeito à saúde pública, transporte ou segurança pública. Não entendo o que confere tanta liberdade para pais sem preparo profissional se sentirem tão á vontade para assumir a profissão de educadores que estudaram para assumir uma tarefa tão complexa. OPS! – De um ponto de vista pedagógico, científico, tem muita gente que considera homeschooling um método inapropriado e, em última instância, danoso para o crescimento psicológico e intelectual dos jovens. O que você pensa sobre isso? Rudá – Já respondi anteriormente nesta linha. É um equívoco técnico e social. Há, inclusive, experiências de escolas de pais (Charter School, nos EUA, escolas família-agrícola na França e Brasil, cooperativas educacionais e outras). Mas a opção por ensinar em casa nem de longe tem este desejo social, de interação e construção de um projeto educacional coletivo. É um retrocesso social, uma saída egoísta e privatista de conteúdos e métodos educacionais. Se há crítica á escola brasileira, a saída é se envolver com campanhas de melhoria. Acabamos de realizar a maior conferência nacional de educação, o CONAE, que definiu novos rumos para nossa educação. Por qual motivo os pais que sugerem o homeschooling não participaram deste evento democrático de discussão de um projeto educacional? OPS! – Quando um pai matricula seus filhos na escola, partem da premissa de que a escola será capaz de garantir uma boa educação aos seus filhos. Neste sentido, você faz diferença entre escola pública e escola privada? Rudá – Não. Temos dados das principais universidades públicas do país que revelam que a maioria dos alunos são oriundos de escolas particulares, mas que os alunos oriundos de escolas públicas figuram entre os melhores desempenhos. Em outras palavras, a escola particular é focada no sucesso de mercado. E os pais no Brasil, infelizmente, acreditam que sucesso é passar no vestibular. E nosso vestibular é um dos piores do mundo, fragmentado por universidade (e não nacional, como em vários países) e reduzido a questões por disciplina (e nem envolvem avaliação de práticas sociais, como nos EUA). Assim, as escolas particulares aplicam, principalmente no ensino médio, técnicas de memorização (como os famosos simulados), baseados na Escola Comportamental. As escolas públicas, por seu turno, possuem muitas dificuldades e inúmeros projetos pedagógicos, muito distintos entre si e pouco conhecidos do grande público. O fato é que elas se equivalem do ponto de vista educacional e isto se verifica nas avaliações do PISA, que envolvem muitos países, incluindo o Brasil. Há equívocos e lacunas graves no ensino brasileiro que precisam ser superados com rigor. Projeto que não creio que seja para leigos, mas para profissionais elaborarem. É importante que pais participem, mas que exista respeito pela especificidade técnica desta construção ou banalisamos a educação de vez. OPS! – O que você percebe de mais grave no atual sistema escolar? Incapacidade de informar os conteúdos ou incapacidade de preparar para a vida? Rudá – O maior problema é que desenvolvemos um importante projeto pedagógico, nos anos 90, mas não alteramos a lógica administrativa. Temos que adotar contratos de dedicação exclusiva para professores (como já ocorre em universidades) e escolas em tempo integral (não escolas integradas, este arremedo de escola em tempo integral que o Brasil inventou). Os professores não podem ter mais que 4 turmas. Os professores precisam de tempo para analisar suas turmas e as dificuldades específicas de seus alunos, incluindo os problemas de convivência e as dificuldades de relacionamento familiar. Para tanto, precisam realizar conselhos de classe semanalmente. A melhor educação do mundo ocorre na Finlândia. Basta analisar as condições de trabalho e projetos coletivos desenvolvidos pelos professores. Os pais participam de discussões diárias, até mesmo pela internet. A saída é mais profissionalismo. OPS! – E se o Estado, no caso das Escolas Públicas, não consegue levar uma criança ao seu pleno desenvolvimento, este deveria ser processado pelas famílias por abandono intelectual? Rudá – Sim. Esta é a saída. Responsabilizar as autoridades públicas que não cumprirem com seu dever. Há, inclusive, projetos de lei (a Lei de Responsabilidade Social produzida pelo Fórum Brasil do Orçamento) que caminha nesta direção e tramita na Câmara Federal. Temos que acreditar no projeto coletivo, humano. As saídas individuais são voluntaristas mas desprovidas de crença na humanidade. Daí eu afirmar que o homeschooling não ter relação alguma com religião, justamente porque negam a crença na humanidade. É uma mera saída individualista, desesperada e sem esperança na convivência e no projeto coletivo. Leia também o contraponto na entrevista com Cleber Nunes, que defende a possibilidade de uma educação domiciliar.