As asas do que não existe*

 

Morei satisfeito na minha meninice até os doze anos. Um período em que eu vivia amassado nas gavetas dentro do guarda-roupa rabiscando estórias desinteressantes sobre não ter doze anos. Minhas ideias mofaram assustadas durante muito tempo.
 
Eu vestia roupas adultas em cortes infantis. Lia conteúdos crescidos de uma literatura que exigia uma capacidade cognitiva mais robusta. Usei óculos imaginários durante anos, tentando enxergar o que não existia. E quando a realidade chegou tentando dizer um Olá agradável, eu ainda não entendia que o que achamos que não existe – ou não existiu– provavelmente nunca existirá mesmo se não pensarmos nisso.
 
Mamãe beijava meus pés, em qualquer época do ano, antes de dormir. Um beijo molhado e vigoroso. No dia seguinte, eu andava sentindo-me culpado como quem carrega um crime que ainda nem existe. Era intolerável, e ardia, ter que pisar nos carinhos que mamãe oferecia todas as noites.
 
O medo provavelmente não existia. E, ainda assim, eu acreditava nele.
 
Mamãe beijava a planta dos meus pés pra dizer, talvez, que nos dias que viriam eu precisaria encontrar uma maneira saudável de pisar firme. Então, como quem carrega tempestades em copos d’água, comecei a acreditar no amor e no poder das escolhas. Com os pés cheios de beijos. 
 
Mamãe beijava meus pés esperando que eu voltasse pra casa? Ou para que eu tentasse começar a existir longe dela?
 
Já meu pai começou a existir apenas há dois anos, de fato. Eu não entendia o que era ter um pai. Imaginava que ele tentava encontrar o caminho de volta pra casa todos os dias, e desistia porque talvez, pensava eu com meus magros doze anos, sua mãe nunca tivesse beijado seus pés antes de fazê-lo adormecer.
 
Ele não-existia existindo. Eu pensava nele como uma possibilidade.
 
Por isso, hoje, entendo todos os homens e mulheres que não ficam comigo, que existem em mim sem existência alguma: acenando paralisados presos a um bloco de gelo que navega num mar escaldado de esperas cansadas que é a minha decisão.
 
Tenho o nome de um anjo tatuado no peito. Nunca vi um anjo; nunca senti o um farfalhar de asas que poderia denunciar uma visita de seus voos. No entanto, ter um nome em tinta preta, num hebraico de internet que nem sei se é correto, me faz pensar em bondade, em arrebatamentos gloriosos, problemas que se dissolvem em porções de compreensão. Assim, penso em anjos como sentimentos honestos. Suas asas são braços de amigos que te recebem com carinhos espontâneos. E milagres são detalhes humanos que salvam; são beijos que você recebe de tudo aquilo que você acredita.
 
Se a lua existe? Claro. Ela não está lá em cima? Não só por isso. Conheço um moço que olha para o “prateado-redondo” da lua como um susto de Deus num momento sem inspiração, uma crise criativa divina. Para ele, a lua é um detalhe, mas que não salva ninguém. 
 
Conheço também pessoas que ainda não existem. É o que elas dizem. Não pensam sobre seus detalhes acontecendo no mundo que para elas só existe se os milagres não dependerem delas. E não é porque sonham acordadas. As pessoas não existem quando decidem pelo fim, quando escolhem apenas o outro. E se apaixonam pelas faltas.
 
Eu não acreditava no amor, até dizer eu te amo.
 
Não acreditava em mim, até dar o primeiro salto.
 
Não acreditava em uma palavra do que eu dizia, até ler minha primeira frase escrita dentro dos olhos de quem se emocionou com ela.
Porque não existe algo que realmente não exista. Até você decidir ou pensar sobre esse algo.
 
Como a morte.
 
A morte também não existia pra mim. Um dia, bem triste, quando o sol e o preparo pra uma vida nova cabem no bolso, a morte chegou e abraçou meu avô. Passei a acreditar na dor da perda, e também na saudade. E porque a morte de alguém que eu amava aconteceu, resolvi acreditar nela. 
 
Então, hoje, eu abraço com cautela minha avó de noventa e dois anos, e a faço rir quando nem eu tenho motivos. A morte pode querer abraçá-la com mais força. Pois ela existe. Embora eu queira fazer de conta que não. Morrer é deixar de amar com abraços.
Sempre existe algo que será indescritível, ou indizível, desmedido, suposto, sonhado.
 
Mas começará a existir quando eu pensar sobre ele(a)(s)(as).
 
Amor eterno? Aconteceu no caminho de pessoas que não revelarão o segredo.
 
Vida eterna? Está presa na memória de algumas pessoas que ainda são futuro.
 
Anjos? Abrace seus amigos fieis.
 
É como disse alguém que não conheço, mas que deve existir: não é porque você não conheça ou não veja que aquilo/isso não exista.
 
E se o que não existir continuar não existindo e me assombrar?
 
Eu digo Oi.
 
E lembro dos beijos que carrego nos pés.
 
 
*Sobre questionamento de @AnaCarolina_PSI no twitter “O que você pensa sobre o que nunca existiu,não existe e nunca existirá?”
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Raimundo Neto