O reino imaginário e o apocalipse inverso em 2011

 

Quando criança, eu caminhava com desastres iminentes presos aos pés. Tropeçava e sangrava como uma razão de existir. Não era fácil ser incansavelmente destrambelhado. 
 
Os anos passavam e eu só aprimorava o sentido daquilo. Penso, hoje, que meu corpo pedia calma e leveza na realização dos movimentos. Eu não era apenas apressado, mas imediatista, não esperava a lua aparecer completa para abrir um sorriso no céu dormido, então eu desenhava luas borradas que completassem a minha noite.
 
Anos se passaram e parei de escrever catástrofes no corpo. O equilíbrio de calcular passos firmes na imensidão de incertezas do dia-a-dia foi fortalecido. Aos dezoito anos, aprendi a saltar pequenos abismos cotidianos com delicadeza. Uma vida nova sempre no passo seguinte.
 
Eu era um monarca dos tropeços no reino do despreparo para alegrias equilibradas, mas sem a majestade da maturidade ou coroa das boas qualidades que me sustentassem protegido até a adultecência. Cicatrizes que anteciparam calamidades íntimas foram surgindo dolorosas e sombrias com o mundo adulto.
 
O dia do meu último escorregão: 31.12.2010. Quando me lembrei de uma chuva fina prateada que destruía lentamente uma cidade minúscula de casas de terra vermelha e bonecos coloridos que inventei no quintal do meu avô; quando me lembrei de sonhos imensos que pesaram úmidos dentro do peito e meu coração teve que aprender a chorar torrentes de uma luz salvadora que me salvasse da escuridão de estar sozinho.
 
Quando penso que o próximo ano não precisar ser necessariamente parecido com o ano que já foi vencido, então recordo tropeços e cicatrizes da infância.
 
Eu caía, derramava desejos de conquistas aos pés dos outros, minhas alegrias sangravam quase abençoadas pela renovação da pele, mas os ossos continuavam todos intactos. Porque dentro dos ossos carrego os sonhos do corpo de ser maior que as dores.
 
Nesse percurso, não tratei a solidão como um desvio; nem as paqueras frívolas tornaram-se miragens encantadas no deserto pavoroso que se revelava quando o meu querer parecia insustentável.
 
Solidão não é ausência. É um constante permanecer dentro dos limites de ser outro (se é que tem limites).
 
Solidão é ter amigos e respeitar suas decisões. É ter família e conjurar os demônios que habitam os afetos necrosados de cada um quando não houver mais a lucidez do bom senso e a fé na mudança ou no futuro.
 
Estar sozinho é ter livros a experimentar quando seus vizinhos estão embriagados de uma púbere palermice inconseqüente aos trinta anos.
 
Solidão é uma tempestade de gelo num coração em chamas.
 
Estar só é não ter medo de olhar cicatrizes e ouvir suas histórias (Você já parou para ouvir a longa história que suas cicatrizes têm a contar?), e lembrar-se das cores que possuíam quando seu passado era uma folha em branco.
 
Aceitar a solidão é calar os gritos desesperados de suas crenças pegajosas de que você não é o bastante em sua própria vida.
Solidão é aquele vulcão inativo que ressona tranqüilo no teu continente de escolhas dignas que jamais acordará enfurecido para petrificar e destruir tua fragilidade suposta.
 
Toda solidão é uma cicatriz de um amanhã afiado; é uma única porta (dos fundos) em um enorme prédio em chamas.
Solidão é estar preso dentro de si sem o endereço da salvação.
 
Minhas quedas foram públicas. Não caía quando permanecia sozinho. Eu poderia ensaiar a última dança ou acrobacia da história, com translações equivocadas, rotações sobre o eixo da minha falta de coordenação, e ainda assim eu não caía. Bastava um olhar estranho qualquer que meu corpo abraçava imediatamente a gravidade.
 
Foram todas quedas assistidas. Um público cativo para escorregões precisos. No entanto, eles esqueceram-se de ver até o final, até hoje. 
 
Minhas dores aprenderam a sorrir largamente, e perdi toda a majestade antes da adolescência. E ainda tenho marcas polidas de tristezas que trovejam. 
 
Arrisquei-me a construir um reinado de possibilidades, de meios caminhos cheios de tudo que faz rir e chorar, cansaços existenciais pintados com cores que ainda desconheço, estradas asfaltadas e cheias de buracos discretos que levam ao recomeço.
 
No meu reino, os príncipes são tatuados com alegrias animadas e rabiscos de amor glorioso; os mesmos sorrisos que são explosões de acalento; os amigos são presenças e brisa; a família é aquela que escolhe suas qualidades como se elas fossem um orvalhar salvador que acorda primaveras.
 
No meu reino, os dias não se repetem. E as horas são apocalipses inversos.
 
No meu reino, a solidão de nossas vidas é uma escolha enervada do que nos falta; e tropeços ajudam a construir novos caminhos, a reaprender a caminhar.
 
No meu reino, a vida e o ano novo começam a qualquer momento, em 5… 4… 3… 2… 1!
 
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Raimundo Neto