Sobre amizades coaguladas e conceitos vencidos


Amizade é um bicho estranhamente necessário. Se correr, ela te pega. Se ficar, ela te preenche. Quem tem amigo sabe como pequenos momentos de partilha e gargalhadas sobre temas banais de mínimas resoluções são capazes de aplacar dores insuportáveis.
 
Sempre precisei de bons amigos que soubessem executar sua presença com competência. Eles vinham com seus detalhes infantis fazer parte da minha carência de filho único. Dividíamos jogos, revistas, livros, sorrisos. Mamãe preparava uma sopa mais colorida que suculenta para garantir que nossa amizade estivesse bem nutrida. Quando os assuntos de adulto foram infiltrando-se na minha consciência adolescente, e uma sombra corrosiva de inadequação começou a invadir minha disposição para uma vida comum, os amigos estavam lá para compartilhar carnavais insuportáveis, programas de TV medíocres e minha morna tentativa de buscar a indiferença; eles também estavam lá (lado, dentro, próximos e profundos) quando eu não conseguia parar de chorar por tudo que não dava certo. Eu estava me tornando uma área alagada com emoções venenosas; mas eles sabiam como mergulhar em mim. 
 
Mas claro que é preciso definir termos e adequar expectativas. A expectativa é aquela força iluminada e também amaldiçoada que te faz esperar sempre mais do que é pequeno e, às vezes, infrutífero. Nem todas as pessoas que dividem com você risadas e opiniões forçadas e pretensiosas sobre seus próprios (e questionáveis) talentos é um grande amigo seu. Eu tenho Sete Grandes Amigos. Uma categoria que inventei quando o peito armazenava tormentas. São categorias de assuntos importantes que comecei a elaborar ainda criança, quando entendi que nem todas as pessoas que experimentam com você uma mesma existência desordenada e um afago ou outro por carência serão seus amigos. Os outros cinco ou seis que entendo presentes também são importantes, com a mesma clareza audaciosa de uma vela de sete dias em noites cheias de breu. 
 
Perdi bons pedaços de tempo responsabilizando outras pessoas por erros que foram meus, culpando-as pelas rejeições que acumulei, atribuindo à minha mãe, por exemplo, o fracasso dos meus sonhos. Eu preciso assumir parcelas de responsabilidade sobre a minha vida, não? Comecei a entender que os tentáculos pegajosos de crenças absurdamente disfuncionais impossibilitavam modestas realizações que me fariam mais satisfeito. Aceitar o incerto, que não há nada que dure por tanto tempo assim, que eu jamais conseguirei ter controle de uma vida cheia de reviravoltas e acontecimentos despadronizados, e que tudo é uma questão de conceito: Não foi algo doce de pôr na ponta da língua para declarar que a vida pode ser mais aceitável. Entendi que vestir a velha e amedrontada fantasia da autocomiseração e apontar as afiadas armas da culpabilização configuram-se um erro dentro de outros erros. 
 
A rejeição é um conceito que eu experimento. Qualquer duelo de olhares caprichosos é motivo de ansiedade para mim. Nada que cause um abalo sísmico na minha capacidade de permanecer com eixos íntegros e dignos. No final da batalha de vaidade, porém, um ferido baixa a guarda e desiste da iniciativa: minha autoestima. Se o cara para quem eu olhava é um escroto vaidoso que alimenta sua arrogância divina com minha tentativa de pertencer ao anoitecer de sua beleza? Claro que não. Os sujeitos não são ruins porque fazem escolhas diferentes da sua, porque possuem perspectivas de outras cores. Acho que talvez você não admita não ser escolhido. Não? Ora, o fato, quem sabe, é que não somos compatíveis com outras pessoas, que não nos adequamos ao ideal de relacionamento do outro, não nos encaixamos na ilusão simpática daquelas pessoas que não nos quiseram, e isso não quer dizer que seremos eternamente rejeitados. (Uma imagem da sua velhice solitária impregnada de naftalina e sorriso cansados, dividindo a cadeira com um gato divorciado de sua independência felina e vendo novelas repetidas deve ter aparecido no meio das suas catástrofes imaginárias. Talvez.)
 
Mergulhei nas águas caudalosas e valentes do reconhecimento de novas necessidades e omissões anteriores, como avaliar minas terrestres em áreas perigosas de países de herança explosiva. Não precisei elaborar uma lista, que seria extensa se estivesse no papel. Bastou uma redefinição de conceitos, intolerâncias, movimentos imprecisos de aceitar qualquer pessoa como um bom partido que completaria meus vazios.
 
Comecei a perceber que a rejeição talvez nem exista; o que permanece é a ideia de que há rejeição em todo canto. E isso é uma construção. O caminho para o conceito de amizade tem os mesmos desvios. Encontramos pessoas que sustentam crenças absolutamente diferentes sobre ser um bom amigo e manter o vínculo. Conheço uma moça que com receio de que um afastamento começasse a brotar no canteiro encantado de uma amizade singela e respeitosa adubada com honestidade, fidelidade e disposição para aceitar deslizes e emoções profundas que ela mantinha, resolveu conceder o título de madrinha de seu filho à amiga: A outra ajudaria a cuidar do filho e elas permaneceriam assim respeitando o amor que salva. O nome disso? Compromisso. Firmar compromisso não é um laço para enfeite, que desatado revela a beleza de algo que será consumido ou acumulado em pilhas nos depósitos de antiguidades do coração. Compromisso é um nó apertado para guardar um segredo, uma mágica, uma salvação.
 
Um dos problemas é (claro que minha percepção é caolha, já que sou um solteirão irremediável): algumas pessoas não estão interessandas em Pessoas, mas, a qualquer custo, começar um relacionamento (e terminá-lo o mais rápido possível, porque o tempo é pouco para conhecer muita gente). Aceita-se humilhação pública, degradação moral, abuso físico e psicológico. Existe uma falta que não cicatriza e um pavor em assumir a solidão como estado; olham para a solteirice como uma maldição que se repetirá até o fim do amor, uma praga que infesta as possibilidades de ser feliz por outros termos. Se há falta, está lá a tentativa, desesperada para alguns, de preenchê-la.
 
E então começa o derramamento de sangue, um verdadeiro massacre de sentimentos importantes, o soterramento de relações frágeis já na sua concepção, inícios fragilizados, capengas, pálidos; vejo algumas pessoas buscando quase sem ar, no topo do seu Everest do Amor que Ainda Existe, Alguém que permaneça mais um dia, rarefeitos em suas certezas de pertencer àquela pessoa que se apresentou ontem, está em dúvidas hoje e talvez não fique até amanhã. Está vencido para alguns sujeitos: O tempo de repensar a vida e os conceitos sobre a constituição da vida, e usar horas vagas para refletir sobre posturas fraturadas num conjunto de decisões arrogantes e sujas. O namoro vem como termo de salvação: Ou você assina e salva sua sanidade, ou estará dentro de uma clausura modorrenta que é a solteirice. 

É interessante ainda observar como o Amor parece tornar as pessoas mais maduras. Aqueles mesmo amigos de antes agora estão mais centrados porque estão namorando. Eles asseguram que há uma mudança forte e quase palpável, como se fosse possível observar o movimento da alteração de padrões. A ideia vigorante parece ser: Se estou namorando, há amor, se há amor significa que fui capaz de derrubar barreiras e superar limitações, portanto Sou maduro. E aí vem outro problema: Os amigos solteiros. Ora, se você está solteiro, há algo de errado com você. Você JAMAIS entenderá as escolhas, as deixas irônicas, as críticas armadas, as ausências coaguladas. Os solteiros passam a ser aquele ponto de conflito, aquelas almas incompreensíveis que cutucam o amor com vara curta, e possuem a energia de um demônio esbaforido lutando contra o alto-astral do amor permanente; Os Namorandos: políticos de Esquerda que aderiram aos ternos caros da Direita.
 
(Já dei minha opinião sobre a solidão aqui ó!).
 
Sujeitos em estado de amor atuante com seus namoros permanentes não possuem um coração mais complacente e uma inteligência mais eficaz. Nem os solteiros. Todos são sujeitos de significados e de reestruturações. São criaturas da falta, mordidas todos os dias pela insatisfação e recusa para entender e aceitar que não teremos controle e certeza sobre o amor do outro e quanto tempo ele apreciará continuar amparando nossas necessidades. É tudo apenas uma questão de perspectiva.
 
No entanto, é preciso coragem para redefinir padrões de funcionamento, organizar expectativas e crenças mais ajustadas sobre tudo. Inclusive sobre Amigos. Será necessária uma dose continental de bom senso. É quando você tentará perceber todas as iniciativas falhas (de aproximação e afastamento) que te mantiveram equivocado e até ridículo em todos os seus anos turbulentos de disparates e deslizamentos. 
 
Muito cômodo para muitas pessoas simplesmente sustentar ausências e distâncias. Muito prático e conveniente o conhecido “Se quiser, apareça” sem uma iniciativa madura de manter a permanência de um amigo, de um amor, do trabalho que satisfaz, de alguém que poderia demorar mais um pouco. Amigos que namoram costumam esvaziar uma postura mais consciente de colocar-se no lugar do amigo solteiro: Sempre é falta de compreensão do amigo solteiro: “Ah! Ele quer sumir?… Ok. Eu tenho meu namorado mesmo!”. Não há nada que dure para sempre: O amor de outrora, por exemplo; nem os conceitos permanecem os mesmos, nem a pretensão e o engodo de sustentar amizade borrada.
 
Nem todo mundo é honesto o suficiente para aceitar sua parcela de responsabilidade dentro das coisas que ficam e dentro das coisas que partem.
 
Mas claro que isso é apenas uma divagação (ou difamação?) inconsistente, já que eu não tenho um namoro na minha agenda de compromissos. Afinal:
 
Raimundo, você não vai entender. Você é solteiro.
 
 

 

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Raimundo Neto