Garrafas ao Mar By Deodato Rivera / Share 0 Tweet “Quem é capaz de semelhante infâmia – bater em preso – não pode servir a este governo. {…} esses espancadores de presos devem sair da Polícia. A covardia não se inclui entre as virtudes cívicas. Nem permitirei que uma falsa razão de Estado prevaleça sobre o dever de zelar pela dignidade do governo, organizado e exercido em nome de um povo cristão e democrático.” “Quem é capaz de semelhante infâmia – bater em preso – não pode servir a este governo. {…} esses espancadores de presos devem sair da Polícia. A covardia não se inclui entre as virtudes cívicas. Nem permitirei que uma falsa razão de Estado prevaleça sobre o dever de zelar pela dignidade do governo, organizado e exercido em nome de um povo cristão e democrático.” Essas afirmações foram feitas em 17 de fevereiro de 1964, por Carlos Lacerda, então Governador do Estado da Guanabara, no despacho final de um processo administrativo sobre denúncias de tortura policial em seu governo. Lacerda determinou a expulsão dos acusados e a censura e suspensão por 90 dias dos policiais que tentaram encobrir o crime dos colegas (ver “Em preso não se bate –, despacho em processo administrativo”. In Carlos Lacerda, Palavras e Ação, Rio de Janeiro, Record, 1965). É bom lembrar Carlos Lacerda — um político acima de qualquer suspeita de “proteger criminosos com a defesa dos direitos humanos” — neste clima de banalização do horror no Estado do Rio de Janeiro, onde a criminalidade assumiu proporções catastróficas, a população vive sob o império do medo e com freqüência a Constituição e as leis têm sido desrespeitadas no enfrentamento dos delinqüentes, prática defendida hoje abertamente até por muitos cidadãos bem intencionados como a única saída possível para a proteção da sociedade contra o crime. Um dos políticos brasileiros mais inteligentes e controvertidos, anticomunista ferrenho, implacável contra a corrupção e os corruptos, odiado pela maioria dos seus adversários políticos e apoiado com devoção por amigos e correligionários, Lacerda administrou o Estado da Guanabara na plenitude das qualidades que fazem a grandeza de um governante: probidade, eficiência, visão de futuro e sabedoria política humanística, que ele aplicou impecavelmente nos casos de violência policial em seu governo (registre-se que este articulista, incapaz à época de reconhecer sua grandeza, negou-lhe sempre o seu voto, principalmente devido ao ardor com que ele combatia Juscelino Kubitschek). Oxalá o Governador Sérgio Cabral possa refletir com sua equipe sobre esse episódio de quase meio século e tirar as duas lições que ele nos oferece em benefício da humanização das estratégias e dos métodos de segurança pública no nosso Estado e no Brasil, e em favor da verdadeira defesa social: (a) o princípio de que, ao lidar firmemente com os criminosos, por piores que sejam seus crimes, os fins nunca justificam os meios, e (b) o alerta de que a autoridade que se omite nesse particular é cúmplice da covardia criminosa e contraproducente dos maus policiais. Com efeito, mesmo nas condições dramáticas de hoje, enfrentar a barbárie dos traficantes com a barbárie do poder público é o mesmo que tentar apagar incêndio com fitalato de dibutila — uma substância parecida com a água, porém tão incendiária quanto a gasolina. Porque são demonstravelmente contra-producentes a execução, a tortura ou os espancamentos de criminosos presos — comportamentos hoje aplaudidos nos cinemas de todo o país durante a exibição do filme Tropa de Elite, uma ficção baseada em fatos reais, como deixaram claro os autores do livro em que se baseou o filme. Não obstante esses aplausos, é preciso lembrar que numa verdadeira democracia o estado é a lei, não o crime, a justiça, não a barbárie, e a ordem em benefício de todos. Por isso e para isso o estado precisa ser dirigido por líderes competentes, honrados e com visão de futuro, capazes de defender do crime a sociedade dentro da lei e da ordem constitucional, como Carlos Lacerda soube fazer no seu governo. Infelizmente, essa não parece ser ainda, mas precisa vir a ser em breve, a visão do atual Governador do Estado. Isso se revela nas suas posições ambíguas ante as suspeitas levantadas pela OAB sobre a recente operação policial com 19 mortos no Complexo do Alemão, e depois ante as conclusões confirmadoras de autoridades federais, assim como face a evidências, recentemente noticiadas na imprensa carioca, de tortura na Divisão Anti-Sequestro (DAS) do Rio de Janeiro, estranhamente minimizadas pelo Governador em entrevista à imprensa no dia 5 de novembro, mas praticamente reconhecidas pelo delegado-adjunto dessa Divisão, segundo o Jornal do Brasil do dia seguinte: “O delegado-adjunto da DAS, Alexandre Neto, negou que haja tortura. – Na polícia não tem santo, mas ninguém é burro de dar choque para deixar marca – argumentou. – Isso não existe, até porque 90% das torturas na polícia é por tapa.” O que diria sobre essa realidade o ex-governador Carlos Lacerda? Certamente que, como a palmatória do seu tempo, nem “tapas” e nem 0,5% de tortura estão na lei, quanto mais 10%! É imprescindível que o Governador Sérgio Cabral se pronuncie sem ambigüidade sobre tudo isso, e ele pode ter como base para seu posicionamento a alta qualidade ética e pragmática do histórico despacho do Governador Carlos Lacerda em 1964, do qual transcrevemos abaixo outros trechos (com frases negritadas especialmente para este artigo): “{…} infelizmente é verdade que os três presos (Clodomir dos Santos Morais, José Francisco da Silva e Célia Lima – nota deste articulista) apanharam de palmatória na Subseção de Vigilância {…} em que ficaram algumas horas, logo que detidos transportando armas de guerra para fomentar guerrilhas e assaltos de terras. {…} Aplicaram-lhes o tratamento tradicionalmente dado a meliantes contumazes, sem que a sociedade proteste ou a Sociedade Protetora dos Animais se manifeste. {…} Numerosos têm sido os pedidos, inclusive abaixo-assinados, manifestações populares diversas, arroladas nos autos em favor dos policiais. Esta é, precisamente, a gravidade do caso {…}. E a circunstância de policiais que batem em presos conseguirem manifestações de solidariedade parece constituir um grave indício de doença social {…}. Este fato brada aos céus. Sejam comunistas, traidores ou o que for, criminosos ou simples suspeitos, o fato de apanharem de palmatória representa, desde logo, desobediência e grave indisciplina dos policiais envolvidos no episódio {…}. Mas, haverá alguma razão no mundo capaz de justificar quem bate em preso? {…} A vergonha, ainda maior que a dor, não é apenas de quem foi espancado. É, sobretudo, do espancador. {…} Sou dos que não conseguem separar, no comunista e no que o espanca, a criatura de Deus. Não foi Clodomir, não foi Francisco, não foi Célia que receberam, no xadrez, a humilhação da palmatória. Foi no que eles têm de semelhante a Deus que esses maus policiais os ofenderam, ofendendo neles a todos os brasileiros. {…}. No Brasil ainda quase não há democracia. Mas, do que existe, há que preservar exatamente o que esses maus policiais e esses excelentes comunistas querem destruir: a confiança do povo nos valores fundamentais da vida, o maior dos quais é a dignidade da criatura humana, inclusive a do preso. Inclusive a do traidor da Pátria. Proceda-se com ele de acordo com a lei. E a palmatória não está na lei. {…}Os matadores de mendigos no rio da Guarda já estão punidos. Expulsamos agora os espancadores de presos. É mau que eles existam. Mas, eles vêm de longe. Pior seria se encobríssemos a sua existência. Se os tolerássemos, seríamos seus cúmplices e ficaríamos, por isto, nas suas mãos. {…} No meu governo, preso não apanha.” Assim despachava o Governador Carlos Lacerda há quase meio século… Ora, o Brasil só merecerá ser chamado verdadeiramente de “nação cristã e democrática” no dia em que essas palavras puderem ser repetidas, sem hipocrisia ou mentira, por todos os governadores de Estado e pelo Presidente da República. No dia em que “neste país” for desnecessário apelar, como lembrava Lacerda, à Sociedade Protetora dos Animais para defender a dignidade dos presos, ante o silêncio patético dos governantes em todos os níveis. A propósito, é notório que vários ex-presos políticos, como o próprio Presidente da República, e ex-torturados durante a ditadura militar, ou seus parentes, amigos ou companheiros integram hoje a elite política brasileira, alguns com o poder de influir no aperfeiçoamento da legislação e na adoção e execução de políticas e estratégias de segurança pública à altura dos desafios da criminalidade de hoje, de natureza e proporções inimagináveis no tempo do Governador Carlos Lacerda. Pois quem sabe não seja esse, precisamente, o verdadeiro desafio do filme Tropa de Elite: até quando a elite política brasileira nos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, em vez de contribuir para a modernização e a humanização, em todas as dimensões, das organizações policiais, preferirá ser cúmplice, por omissão, desse absurdo que é pretender-se erradicar o poder da barbárie dos criminosos com a barbárie do poder? Em verdade a leitura que muitos fazem do filme Tropa de Elite é equivocada porque a alternativa democrática e legal, pragmática e humanamente correta com relação ao crime organizado é entre barbárie e civilização, não entre a barbárie dos criminosos ou a barbárie do estado.