Ano Novo Feliz?

Um ano novo se iniciou e todos desejamos que as coisas mudem mas, que mudem para melhor. Mas será que só desejar resolve ou ajuda?  Há tempos percebo que de novo só muda o número. No mundo todo me parece que os problemas andam em círculo: giram, giram e acabam sempre no mesmo lugar, se encontram e nada muda. Ou será que é o ser humano que é sempre o mesmo?

Hoje ao conversar com um amigo querido, cujo filho está internado por conta do vício da droga, percebi que nada muda de fato. A violência está a todo vapor como há tempos; as drogas matando nossos jovens; os políticos cada vez mais irresponsáveis, descompromissados com os cargos que ocupam, mais corruptos. Sinto a sociedade chegando ao caos, aos seu limite.

Pensando nisso lembrei-me de um grande jurista, cujo nome é sequer lembrado nos dias de hoje, com o qual muito aprendi como pessoa, como advogada. Evandro Lins e Silva foi advogado, ministro. Uma mente brilhante muito além do seu tempo. 

Fui atrás de meus arquivos (guardo tudo) e encontrei uma entrevista que ele concedeu a uma revista semanal em 21 de outubro de 2002, quase dois meses antes de falecer aos 90 anos em virtude de traumatismo craniano numa queda, no Aeroporto Santos Dumont. Ele voltava de Brasília, onde acabara de ser nomeado pelo presidente Fernando Henrique Cardoso para o Conselho da República.

Eis a entrevista:

“Legalize-se a droga”
 
Aos 90 anos, o advogado está assustado com a violência dos traficantes e sugere a descriminalização como única saída

O advogado Evandro Lins e Silva, de 90 anos, 70 deles militando nos tribunais, nunca teve medo de nadar contra a maré. Na década de 40, durante o Estado Novo, defendeu mais de 1.000 presos políticos. No período da ditadura militar, como ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), concedeu habeas corpus que desagradaram aos militares. Em 1979, foi alvo de críticas feministas ao defender Doca Street, namorado e assassino de Ângela Diniz. Agora, diante da violência e do crime organizado que crescem no país, volta a ser polêmico ao defender a descriminalização das drogas. ‘O tráfico acabaria em pouco tempo, e a violência que ele gera também’, diz, espantado com os atos de terrorismo que estão acontecendo, em especial no Rio de Janeiro.

Lins e Silva continua com vida muito ativa. Há três meses, vem tendo aulas de computador. ‘Meus bisnetos controlam essa máquina, não posso ficar atrás. Viver é aprender’, ensina. Tem dado especial atenção à faculdade de Direito que leva seu nome, inaugurada no início do ano. ‘A idéia é que os alunos não saiam só bacharéis, mas formados em cidadania.’ No dia-a-dia, divide seu tempo entre o escritório no Centro do Rio e o apartamento em Copacabana, onde mora só desde a morte da esposa, Maria Luísa, em 1984. Sempre cercado de livros, concedeu entrevista a ÉPOCA.
 
 
ÉPOCA – A cidade do Rio de Janeiro viveu na semana passada mais uma noite de terror. Por que esses atos de violência dos traficantes estão se repetindo? 
Evandro Lins e Silva – De fato, casos assim eram mais isolados. Meu pressentimento é de que o governo do Estado deve estar agindo com maior firmeza e o tráfico responde com demonstrações de força. 
 
ÉPOCA – O que pode ser feito sobre as armas? 
Lins e Silva – Deveriam ser proibidas a fabricação indiscriminada de armas e sua venda. Anulam-se todos os portes e parte-se do zero para voltar a liberar. Fabricação só a partir de pedido oficial, polícia, autoridades. E zero de entrada no país. O governo tem de cuidar disso. É sua função constitucional. O grande obstáculo é o enorme lobby da indústria de armas.
 
ÉPOCA – O senhor acredita no poder paralelo do crime organizado? 
Lins e Silva – Existe um determinado poder que foge ao controle das autoridades e é localizado nas favelas: a disputa pelo comércio da droga. Com a falta de emprego e oportunidades na vida, as pessoas acabam aderindo a esse estilo de vida, se tornando parte disso, seja ativamente, seja por omissão. O traficante, por ganhar muito dinheiro, ganha o poder de corromper e cria uma teia de força muito grande.
 
ÉPOCA – Como combater o tráfico? 
Lins e Silva – Combater à força é bobagem. O tráfico se tornou a oportunidade de emprego de muitas pessoas. É decorrente dos problemas socioeconômicos do país. Eu defendo a descriminalização das drogas.
 
ÉPOCA – E o que diria a nova lei? 
Lins e Silva – Seriam permitidas a fabricação pelos laboratórios e a venda nas farmácias. Então se passaria a tomar conta das violações nessa venda, sendo necessário receita médica ou algum tipo de regra. Limites seriam criados. Se for feita uma venda irregular, que se puna a infração. Mas não seria mais crime. Dessa forma, a venda da droga sai da esfera marginal.
 
ÉPOCA – Sempre que o tema da descriminalização vem à tona, fala-se muito que o crime organizado se voltaria para outras ações, como assaltos, roubo de carros, e a violência continuaria… 
Lins e Silva – Pode ser. Mas é preciso haver uma ação racional para cada área. O mais importante é focar no que realmente interessa, que é educar e dar oportunidade de emprego às pessoas. Isso, sim, reduziria todo tipo de crime. A solução, a longo prazo, é de natureza social. Mas, por ora, descriminalizar é um passo importante.
 
ÉPOCA – O senhor conhece muitas pessoas que concordem com isso? 
Lins e Silva – Poucas. É uma solução polêmica e as pessoas gostam de discutir a questão moral que isso envolveria. Mas é um caminho muito simples e lógico. O mundo inteiro deveria seguir a mesma linha. A droga não é um problema brasileiro, é mundial. Claro que ao lado disso seria necessária uma campanha maciça no país condenando os efeitos da droga, em especial nas escolas. Mas há outras  medidas importantes, como coibir o contrabando de armas. 
 
ÉPOCA – Sempre que a violência cresce, há uma pressão da sociedade por penas maiores. Por outro lado, as cadeias estão superlotadas. Como resolver isso? 
Lins e Silva – Cadeia não é solução. Nunca foi, nunca será. Presídios imensos são construídos com custo fabuloso, em vez de escolas. Manter a população carcerária é muito caro para o Estado. Tenho 70 anos de advocacia. Nunca vi alguém sair da cadeia melhor do que quando entrou. Cadeia é a coisa mais infame que já se inventou. E ainda cria uma situação de marginalização permanente. Ninguém mais dá emprego àquela pessoa quando sai, ela acaba parando no crime de novo. 
 
ÉPOCA – Quem deve ir para a cadeia e por quanto tempo? 
Lins e Silva – Sou absolutamente contra a prisão como método penal. Deve-se segregar quem for realmente perigoso, quem põe em risco a vida alheia. Hoje a concepção é tão diferente que me assombra. Não se julga um crime, se julga uma pessoa. Há que ver o motivo que levou a pessoa a cometer o crime. Se alguém mata o pai é um crime bárbaro. Mas por que foi isso? Se foi para receber a herança é uma coisa, se foi para defender a mãe das agressões do pai é outra. Há que se olhar as motivações de cada um. Veja os crimes passionais. Nunca vi passional reincidente. O ideal é que se reprima evitando a prisão de toda maneira. As penas alternativas são a saída. 
 
ÉPOCA – O código penal está ultrapassado? 
Lins e Silva – Sim, em muitos pontos. Um exemplo: o crime contra a propriedade é punido com pena mais grave que o crime contra a vida.
 
ÉPOCA – Deve ser porque a propriedade está sendo mais valorizada que a vida. 
Lins e Silva – É sintomático. Hoje o deus é o mercado, é o dinheiro. O sistema capitalista não permite o fim da desigualdade social. Em meus 90 anos de vida, nunca vi uma perspectiva tão sombria para o mundo como agora. E olhe que testemunhei períodos de guerra e revolução. Como conceber que homens como Bill Gates tenham mais de US$ 60 bilhões? O que ele vai fazer disso? Ele vai morrer, como toda criatura, sem conseguir gastar a maior parte. Enquanto isso, milhões de pessoas passam fome no mundo. É uma distorção, me surpreende que as pessoas não se choquem com isso. 
 
ÉPOCA – Qual foi seu melhor momento profissional? 
Lins e Silva – Sempre brinco que será o próximo! Mas tenho grande orgulho de ter defendido mais de 1.000 perseguidos políticos durante o Estado Novo, que criou um órgão de triste memória, o Tribunal de Segurança Nacional. Foi um período de grande terror, eu sei o que enfrentei. Eu me afirmei aí como advogado.
 
ÉPOCA – E o pior momento? 
Lins e Silva – Não foi uma derrota, mas as vezes em que atuei na acusação. Uma situação, em especial, me atormenta até hoje: um médico teria matado um rapaz que fazia barulho na rua. Acusei, o júri popular condenou e ele se matou na prisão. Eu estava convencido de que ele era culpado, mas e se não fosse? E me arrependo de ter acusado. E se a decisão tivesse sido mais resultado de minha eloqüência que dos indícios concretos? Penso nisso até hoje, 40 anos depois. Se um pecado cometi na profissão, foram as poucas vezes em que acusei. Das defesas não me arrependo de nenhuma.
 
ÉPOCA – O senhor acredita em justiça divina? 
Lins e Silva – Boa parte de minha vida supus ser ateu, mas recentemente descobri que não sou. Percebo que existe algo de indefinível que se traduz na perfeição das coisas. O funcionamento do corpo humano. O fato de roçar um botão na TV e entrar uma imagem. Acho que essa perfeição das coisas se chama Deus. 
 
ÉPOCA – Mas o mundo não é perfeito. 
Lins e Silva – É verdade. Isso me lembra a frase de um pensador francês: ‘Neste mundo terrível, Deus é de oposição’. Engraçado que supersticioso sempre fui. Não ando debaixo de escada, não passo sal na mesa e, para subir na tribuna, só com o pé direito. Convivi muito com crendices dos réus. Para muitos, os resultados favoráveis eram mais responsabilidade dos orixás que do advogado.
 
ÉPOCA – Qual é a maior vantagem de viver tantos anos? 
Lins e Silva – Viver é bom. Tive pouco lazer na vida, trabalhei como o diabo. Mas meu prazer sempre foi o trabalho, então fui e sou feliz. Costumo dizer que uma vida longa é boa porque dá tempo de fazer tudo
 

Nascimento  
18 de janeiro de 1912, no Maranhão 
Cargos públicos 
Procurador-geral da República (1961 a 1963); chefe do Gabinete Civil (1963); ministro das Relações Exteriores de João Goulart (1963); ministro do STF (1963 a 1969) 
Família 
Quatro filhos, 11 netos e dois bisnetos
Falecimento
17 de dezembro de 2002, Rio de Janeiro

 

About the author

Newdélia Domingues