A animação intangível de Wladyslaw Starewicz (a.k.a. Ladislas Starevitch)

O animador franco-russo-polonês Wladyslaw Starewicz é quase um desconhecido até para os aficionados pela sétima arte quando deveria estar no top 5 dos maiores e mais importantes cineastas das primeiras décadas do cinema. Pessoas conceituadas como Terry Gilliam clamam por seu nome ao citar os maiores animadores de todos os tempos, mas clamá-lo-ei não como um dos melhores, mas como o melhor num puro estado singular.

Para iniciar a participação neste espaço sobre cinema do OPS, eis que se apresenta o gênio primordial da animação em stop motion, o russo Wladyslaw Starewicz. Nascido no mesmo ano de gênios literários como Virginia Woolf e James Joyce em uma parte da Polônia na época pertencente à Russia, Starewicz estava também destinado a ser um artista revolucionário da linguagem, mas de uma distinta arte, a do cinema. Tão importante para a história da sétima arte como George Mélies, D.W. Griffith, Chaplin ou Eisenstein, Starewicz é quase desconhecido do grande público e até mesmo entre os estudiosos e profissionais de cinema.
Filho de pais poloneses e vindo ao mundo no ano de 1882, Starewicz passou a infância mudando da Lituânia para a Estônia, estudou artes em São Petersburgo, voltou para a Lituânia e assumiu a direção do Museu de História Natural de Kaunas onde deu início à sua mistura de arte com entomologia em pequenos curtas documentais sobre o assunto produzidos para o museu.
A primeira década do século XX foi um tempo de grande experimentação no stop motion com pequenos e decisivos curtas, derivados do trabalho de gente como Émile Cohl e Segundo de Chomón, em uma época que o cinema ainda era a 16 quadros por segundo nem por isso tornava a animação de objetos manualmente frame-by-frame menos trabalhosa ou restrita a poucos experimentalistas. Reconhecendo a grande arte que havia no trabalho de Émile Cohl, Starewicz voltou para a Rússia e juntou-se a Aleksandr Khanzhonkov na primeira companhia de cinema russa resolvido a fazer parte deste seleto grupo de artesões de grande paciência, exercendo sua criatividade narrativa em pequenas histórias populares de grande verniz literário.
Pioneiro do uso de motion blur aliado à animação stop motion, que é a técnica fotográfica que capta não apenas o espaço, mas também o tempo da imagem, por essa técnica Starewicz pôde manusear os insetos com arames escondidos tornando mais eficaz a ilusão do movimento de cada frame sem que os fios aparecessem e apaixonado por entomologia desde a infância, seu estudo sobre insetos ajudou-o a modelar alguns de seus bonecos depois que deixou de usar reais animais mortos em seus filmes, além de outros modelos de animais feitos em couro e feltro.
Desse período em Moscou trabalhou em dezenas de filmes para diversas companhias e chegou a ser condecorado pelo Czar Nicolai II pelo seu desempenho nas artes russas, mas quando eclodiu a Revolução de 1917 na Rússia deu-se o posterior embate entre o Exército Vermelho e o Exército Branco, tendo este último o apoio dos cineastas russos, Starewicz precisou fugir da Rússia com sua família depois da supremacia conquistada pelos Vermelhos na luta pelo poder.
Refugiado na França, Starewicz se tornou um cineasta ainda mais artesanal e familiar, mesmo recebendo convites de grandes estúdios americanos, estabeleceu-se numa comuna nos subúrbios de Paris, onde a ajuda de sua esposa Anna e sua filha Irina foram amplamente essenciais para o seu amadurecimento e sofisticação como cineasta, além da fácil assimilação da cultura francesa transposta visivelmente para a atmosfera de seus filmes, cultura esta que o acolheu até o fim da vida no ano de 1965.

Então que fique aqui uma singela seleção de alguns dos melhores e mais conhecidos curtas do gênio Ladislas para aqueles que desejam conhecer seu essencial trabalho:

Mest Kinematograficheskogo Operatora (1912): Um conto picaresco de ciúme e traição, onde Starewicz chega ao ápice de sua animação utilizando insetos demonstrando características humanas num estudo sobre sexo e infidelidade na hipócrita sociedade russa da época. Não é o melhor, mas é certamente o mais impressionante curta de Starewicz, pela enorme expressividade nos movimentos corporais dos insetos mortos e pelo exímio estudo das relações humanas apresentada na narrativa.

Rozhdestvo Obitateley Lesa (1913): Um belo conto de Natal em que insetos celebram a festa com a ajuda do pequeno papai Noel da árvore de natal de um recato familiar. A narrativa tem um refrescante humor pré-revolução russa e a utilização de insetos mortos ainda está lá.

Strekoza i muravey (1913): Versão russa da fábula de Esopo, também recontada por La Fontaine e Krylov “A Cigarra e a Formiga”, segue a mesma técnica dos insetos com comportamento humano e grande expressividade nos movimentos belamente orquestrados.

Liliya Belgii (1915): Em uma alegoria política, Starewicz toma as dores da recém invadida Bélgica durante a Primeira Guerra Mundial, mostrando um embate entre os intolerantes insetos invasores e os pacíficos moradores de uma bela floresta, onde o lírio como símbolo universal é a representação máxima da paz, beleza e tolerância. É um dos seus primeiros filmes a mesclar pessoas em filmagem live action com as figuras animadas do stop motion, mesmo que sejam em distintas locações.

Les Grenouilles qui Demandent un Roi (1923): No mais político dos curtas de Starewicz, vemos a transposição da fábula As Rãs em Busca de um Rei de Esopo, por mais que se possa encontrar a sombra de um recém expatriado da Revolução Russa na posição de um povo sempre insatisfeito com seu governante ou até com a falta do mesmo, a intenção alude à insatisfação permanente do ser humano e consiste em uma fábula política para qualquer geração.

La Voix du Rossignol (1923): Com a participação de sua filha Irina apenas como atriz assinando o nome Nina Star, é um conto libertário, ecológico e de grande melancolia. Utiliza pássaros moldados que parecem empalhados tamanho o primor artesanal e foi belamente colorido a mão.

La Petite Chanteuse des Rues (1924): Um belo conto de pura poesia onde uma família pobre é ajudada por um macaquinho, curiosamente é um dos curtas que menos se aprofundam em fantasia e com pouco uso de stop motion, pois o boneco-macaco divide os méritos com um animal vivo a interagir com um elenco predominantemente de carne e osso.

Le Rat de Ville et le Rat des Champs (1927): Os mesmos bonecos perfeitamente moldados como ratos misturados a gatos vivos e movimentos de grande expressividade são suas críveis personagens, esta é outra rendição à La Fontaine com a fábula O rato da cidade e o do campo. Aqui Starewicz se rende a comédia pastelão, satirizando a excessiva e mesquinha vida que levam os que moram nas metrópoles em relação aos que vivem no campo.

L’Horloge Magique ou La Petite Fille qui Voulait être Princesse (1928): Já se aventurando em projetos de uma duração maior, este média-metragem é um sofisticado projeto que une brilhantemente o live-action ao stop-motion, fazendo uso da técnica de Model Animation recém vista no filme The Lost World de 1925. É quase como um laboratório para o que viria a ser Le Roman de Renard e funciona como dois curtas amarrados pela presença de Nina Star, na primeira metade a ação se desenrola a partir da visão de Nina sobre o relógio mágico construído pelo avô que dá vida a uma fábula medieval, na segunda metade o onírico toma seu lugar, durante seu sono tem pesadelos de que está sendo atacada por árvores e seres da floresta.

La Petite Parade (1928): Baseado no conto O Soldado de Chumbo de Hans Christian Andersen, fazendo alusão a outros contos do mesmo como A Pequena Sereia e uso de pequenos detalhes tétricos que tanto aprazia ao cineasta.

Le Roman de Renard (1930): Baseado na versão de Goethe para a fábula medieval de Renard, a velha raposa, é o mais ambicioso dos filmes de Starewicz. Pela primeira vez co-dirigindo com sua filha Irene e usando a sua habitual técnica de movimentos, ele nos traz seu primeiro e único longa, que levou 10 longíquos anos para estar pronto e cujos bonecos foram feitos em estatura humana tornando-os mais fáceis de manuseá-los, mas nem por isso mais práticos de serem animados. Comédia picaresca por excelência, nossa cínica Raposa é retratada com o habitual humor ferino de Starewicz, golpeada com uma atemporal sátira política e seguindo os mesmos motes narrativos do romance pícaro onde acompanhamos a evolução imoral do anti-herói nas suas traquinagens de mentir, dissimular e roubar.

Le Lion Devenu Vieux (1932): Mais uma vez Starewicz se rende a La Fontaine na terra natal do mesmo, aqui a versão mistura o stop motion de animais de pano com seus ainda amados insetos para contar uma das melhores fábulas do francês: O Leão Decrépito.

Fétiche (1934): Considerado por muitos a obra prima de Starawicz, é o mais original e bem narrado de seus curtas, mistura bonecos de couro e feltro com figuras humanas em live action. Conta a saga de um cãozinho de brinquedo perdido nas ruas de uma metrópole querendo voltar para sua antiga e pobre dona para entregar-lhe uma laranja. Uma bela alegoria para a depressão que também atingiu a Europa e com grande sentido de caridade. Tecnicamente é um dos mais perfeitos trabalhos da animação em stop motion já produzidos, a famosa sequência de Baile do Diabo peca pelo primor e torna ainda mais visível a grande influência em gente como Jiří Trnka, Norman McLaren, Jan Svankmajer, Brothers Quay e Henry Selick.

Fétiche en Voyage de Noces (1936): Em parte um musical cômico, parte aventura, feito em parceria de sua filha Irene durante a fase francesa, o uso do stop motion se faz com bichinhos de pano ferozmente detalhistas aludindo às suas personalidades e seus comportamentos durante uma viagem de navio.

Fleur de Fougère (1949): Baseado num conto do novelista russo Józef Ignacy Kraszewski que trata do mito eslavo de que na noite de São João um tipo de samambaia floresce e quem conseguir colher tal flor antes do cantar do galo terá tudo que mais lhe aprouver. É mais um conto moral de que nada adianta viver num mundo de fantasia cheio de luxos materiais se o amor verdadeiro não está presente. A paciência e técnica de Ladislas ainda fazem corar aqueles que em tempos de computador podem ter qualquer Stop Motion Pro para disfarçar a mediocridade artística da contemporaneidade.

Carrousel Boréal (1958): É o canto do cisne de Ladislas, com ele vem mais um belo conto infantil sobre amizade, trabalho e fugacidade do tempo. É também o que mais se aproxima do stop motion contemporâneo em técnica e estilo, tais como James e o Pêssego Gigante e O Estranho Mundo de Jack.

Les Contes de l’Horloge Magique (2003): Recompilação de La petite fille qui voulait être princesse, Petite Chanteuse des Rues e Petite Parade, editados e restaurados pelo contemporâneo animador francês Jean Rubak, adicionando a narração do cultuado ator Rufus.

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Adriana Scarpin