Milton Ribeiro By Milton Ribeiro / Share 0 Tweet Como você ouve música? Há mais de 20 anos, li um artigo do brilhante crítico musical J. Jota de Moraes em que eram descritas as diversas formas de se ouvir música. Se a classificação é do professor, as explicações sobre como age cada grupo são minhas e peço desculpas a ele pela irreverência de meu […] Como você ouve música? Há mais de 20 anos, li um artigo do brilhante crítico musical J. Jota de Moraes em que eram descritas as diversas formas de se ouvir música. Se a classificação é do professor, as explicações sobre como age cada grupo são minhas e peço desculpas a ele pela irreverência de meu texto. Os grupos: Os Ouvintes de Grau 1: Os que ouvem com as pernas. Estes seriam os ouvintes mais primários, os simples. A música (ou o ritmo) que lhes entra pelos ouvidos dirige-se a suas pernas ou à deleção sumária. São as pessoas que ouvem música apenas para dançar ou para servir de fundo sonoro a outras atividades. Na verdade, eles não se preocupam com a fruição do fenômeno musical, pois desejam apenas o ritmo ou o preenchimento de silêncios. As músicas que são tocadas em volume baixo dentro de empresas ou em alguns encontros, são exemplos de música de fundo que está lá não para ser ouvida, mas com a finalidade de preencher alguma lacuna que não conheço, pois nada é preenchido em mim pela chatíssima música-ambiente. A New Age é, em minha opinião, o ápice desta arte que existe para não incomodar. Já a música de dança não pode ser tratada da mesma forma e obriga seu apreciador a fazer movimentos corporais, às vezes a cantar junto (se houver algo a cantar) ou a bater o pézinho, no mínimo. A maioria das pessoas dos outros graus também tem o hábito de dançar, mas muitas delas, se a música for muito ruim, turbinam-se antes com um pouco de álcool. Sendo rigoroso, diria que as pessoas do grau 1 não ouvem música, ouvem ritmos ou tranqüilizam-se com vendo preenchidos os eventuais silêncios perturbadores. Os Ouvintes de Grau 2: Os que ouvem com o coração. Este caso é uma evolução do anterior. Aqui a música já é ouvida, mas desvia-se de seus cérebros e toma um caminho estranho, mais curto que os das pernas: o do coração. Trata-se daqueles seres que ficam relacionando músicas com períodos de suas vidas, são os que ficam amorosos e se aninham a seus amores quando é executada “a nossa música”… Para estes seres, a música existe para lhes sugerir fatos e coisas que estão no mundo ou em sua memória. Normalmente, são pessoas nostálgicas e que ficam facilmente embevecidas. Um dos efeitos colaterais desta postura é que, com a idade, eles não conseguem manter suas contemporaneidades, ficando agarrados às músicas de sua juventude e que são invariavelmente melhores que as atuais… Mais: é perigoso andar de carro com alguém de grau 2. Certa vez, estava de carona com uma figura destas quando um alucinógeno dos anos 80 começou a ser executado no rádio do carro. Aquilo fez com que o motorista de grau 2 ficasse tão transtornado com suas memórias e saudades, que voltou-se para mim a fim de contar sobre um remoto, saudoso e tórrido idílio embalado por aquela melodia. Só que o implacável sinal fechou e J.C.A. foi de encontro a um carro que parara metros adiante. Antevendo a desgraça, levantei os joelhos, porém fui atirado violentamente para a frente e quebrei o painel do carro com eles. Afirmo-lhes que o painel do Toyota Corolla destrói-se facilmente com uma boa joelhada e que nossos joelhos não sofrem absolutamente nada. Nem as calças. Experimente! Voltando a nosso assunto, completo dizendo que o ouvinte de grau 2 têm enorme sensibilidade às melodias, mas não costuma preocupar-se com o restante da música, nem com o trânsito. Os Ouvintes de Grau 3: Os que ouvem com os ouvidos. Neste caso, a música que nos entra pelos ouvidos vai para majoritariamente para dois locais de nosso corpo: o coração e o cérebro. Depois de passar pelos órgãos citados, o ser de grau 3 pode até dançar e bater o pezinho acompanhando a música, mas ele registrou o que está ouvindo. J. Jota de Moraes, segundo lembro, foi bem mais arrogante e chamou este grupo de “Os que ouvem estruturas”. Não quis imitá-lo, mas reconheço a pertinência da expressão. Se a audição do primeiro grupo é determinada pelo bate-estaca e pela não-audição e a do segundo pela melodia, este grupo identifica verticalmente o cluster sonoro oferecido e consegue extendê-lo pelo tempo da música. São pessoas exigentes e normalmente não são compreendidas pelos outros grupos. Por exemplo, detalhes difíceis de serem caracterizados podem provocar-lhes violenta ojeriza. Muitas vezes, a pessoa de grau 3 não sabe porque detesta determinada música. Ele apenas detesta e protesta contra ela, fato que parece uma excentricidade incompreensível às pessoas de grau 1 ou 2. Tais posturas só podem ser toleradas por outro ser de grau 3 que, mesmo discordando eventualmente da avaliação, irá respeitá-la. As pessoas de grau 3 podem direcionar seu amor à música para vários estilos. Por exemplo, eu gosto de música erudita, o Tiago Casagrande de heavy metal – e, diga-se de passagem, é inteiramente compreendido pelo ex-roqueiro Milton Ribeiro -, o Idelber Avelar e a Mônica Alves para a música popular brasileira, o Manoel Carlos para suas raízes nordestinas, etc. Certamente, nenhum gênero detém a hegemonia da “boa música”. E a coisa pode piorar: o pianista erudito Nélson Freire gosta de musicais americanos, o guitarrista Keith Richards (Rolling Stones) ama Brahms, Leonard Bernstein dizia que não há nada melhor que Norwegian Wood (dos Beatles), Keith Jarrett disse pretensiosamente que gostaria de ser Bach e Jimmy Page (Led Zeppelin) declarou que preferia ter nascido negro e com o sobrenome King… Ah, e, voltando aos blogs, a visitante bissexta Sonoe, por exemplo, parece ouvir e conhecer todos os gêneros profundamente. Enfim, pode haver grande admiração entre os gêneros e há pessoas de grau 3 que são autenticamente “multidisciplinares”, o que é outra coisa incompreensível aos graus 1 e 2. Observação final: O ilustre professor da USP J. Jota de Moraes anda por aí, é produtivo e dia desses estava ministrando um inédito e concorrido curso sobre a História do Violino em São Paulo. Antes, ministrou uma lotadíssima Introdução à Música Contemporânea. Se ele um dia ler isto, espero que seja compreensivo: 20 anos alteram em muito a memória de um artigo publicado na falecida revista Somtrês. Também não lembro se a abordagem que ele dava ao assunto continha tantos exemplos e bom humor. Diria que sua seriedade ao criar a classificação era… média. (Mas sei que dizemos muitas verdades usando um tom pouco solene.) Peço muita calma ao senhor cuja foto publico ao lado. Não me queira mal, professor. Há um real paradoxo entre seu olhar ameaçador e seus textos, sempre tão gentis. Leia mais em: Milton Ribeiro » Música