Para não esquecer By Flávia Cera / Share 0 Tweet Esse deve ser meu último texto em 2010. Estou com a qualificação da tese marcada e louca correndo atrás dos prazos. Mas ano que vem eu volto com a promessa, evidentemente, de ser uma pessoa mais organizada e não viver em cima do laço sempre. Vendo uma seleção de imagens da década (encerra-se a década, não adianta dizer que foi ano passado, nas minhas contas é 2010), ironicamente, vemos uma série de imagens de guerra e terror. Walter Benjamin dizia que não era motivo de espanto que o fascismo e o nazismo acontecessem em pleno século XX. Benjamin dizia isso porque o progresso técnico não coincide com o progresso civilizatório, porque a história precisa ser contada a contrapelo, porque para reverter o quadro era preciso fazer falar os vencidos. No século XXI, infelizmente, podemos proferir com atualidade a tese de Benjamin. Para além das imagens, tivemos esse ano uma triste continuidade de ataques contra gays. O mais estarrecedor talvez tenha sido o da Av. Paulista. Tivemos uma guinada forte ao conservadorismo nas eleições. Assistimos a elevação ignorante do termo feminazi, sob justificativas esdrúxulas de desconhecimento do significado (talvez a figura de Hitler e do nazismo não esteja presente na vida dessas pessoas, que sorte a delas!). E um fogo cruzado na “esquerda” que se apresentou com um projeto totalizante cujo rótulo agregador é, ironicamente, o progressismo. Não é outra a arma do progresso, levar tudo para frente sem olhar para os escombros acumulados do passado. O progresso triunfa na linearidade dos acontecimentos. O progresso tem uma lógica totalizante que ignora “vozes dissonantes”. Não existe ali a dimensão do Outro, a não ser quando subjugado ao seu funcionamento. Não é por acaso que na bandeira lê-se Ordem e Progresso. Escrevi esse parágrafo num post para o blog Sexismo na Política e reproduzo aqui porque ele resume bem o que eu penso sobre o assunto: Lacan já dizia que o futuro do mundo é o racismo, leia-se também sexismo, homofobia, etc, e que ele traria consigo um autoritarismo desmedido que só poderia acabar em extermínio. Racismo, para Lacan, é não deixar o outro ao seu modo de gozo considerando-o subdesenvolvido. Já Foucault analisa o racismo levado às suas últimas conseqüências. Esse dispositivo que é essencial para a articulação da normalização e da disciplina, faz cortes no interior do contínuo biológico a que se dirige o biopoder e assim classifica quem deve ou não entrar em uma comunidade através da sua qualificação, ou seja, do cumprimento ou não das estratégias de politização e normalização. Essa forma não guerreira e quase sutil que assume um combate não ao “inimigo político”, mas aos perigos da população identificados através da classificação das raças, revela a “aceitabilidade de tirar a vida em uma sociedade de normalização”. Se a biopolítica quer garantir seu direito de matar, pois o biopoder se funda na articulação das máximas “deixar viver e fazer morrer” e “fazer viver e deixa morrer”, ela tem que funcionar com os dispositivos do racismo. Assim, o sentido de retirar a vida se expande às mortes contemporâneas que já não ocorrem necessariamente na forma de um assassinato direto, mas também nas suas formas indiretas: “a morte política, a expulsão, a rejeição, etc”. O problema é que esses assassinatos indiretos, essas formas de desqualificação da vida expandiram seus tentáculos para além do Estado. O racismo já não precisa mais da mediação estatal, já não é necessário que o Estado decida quem deve viver e quem deve morrer. Vivemos numa sociedade de controle cujos dispositivos de desqualificação se naturalizaram e se articulam sozinhos. Fazer o outro ao seu modo e semelhança é quase automático. Pensem comigo: não titubeamos em aconselhar alguém (“ai, eu se fosse você casaria”, ou “ai, eu se fosse você dava o fora”, ou “ai, “eu se fosse você largaria o emprego” ou, “iria para esse emprego”) e esse aconselhamento vem com as melhores intenções do mundo. E, em certa medida, é muito reconfortante porque nos dá coragem, ou não, nos dá mais confiança em tomar uma decisão, ou não. Enfim, é uma estratégia de ficcionalização da vida do outro (eu agiria assim, se fosse você) em que colocamos as variáveis, a partir do nosso ponto de vista, e arriscamos a sorte. Rimbaud, em uma de suas formulações mais conhecidas, disse: eu é um outro. Mas é impossível ser o outro (por isso nossa facilidade em trazer o outro para o nosso mundo). E é violento querermos ser o outro, porque com isso se esvai todo o princípio da singularidade, da experiência, etc. Talvez essa seja nossa grande impossibilidade de sensibilidade total (ainda bem, porque senão a vida seria insuportável). Mas, sem a menor tentativa de corrigir Rimbaud (deusqueperdoetamanhaheresia), a frase poderia ser reformulada assim: eu é no outro. O eu só se constitui no outro, nesse laço e não podemos, jamais, querer desenvolvê-lo ao nosso modo, tirá-lo da sua singularidade. Muitas e muitas vezes ainda ocorrerão casos em que o outro é insuportável. Não há como ser tolerante com um racista, com um homofóbico que quebra uma lâmpada no rosto de alguém, nem com alguém que use o termo feminazi, ou qualquer outra merda que o valha. Não adianta pensar que um dia o mundo vai ser cor de rosa e os racistas vão amar o próximo, ou os homofóbicos vão andar de mãos dadas com gays em uma passeata de “faça amor não faça guerra”. Não vai acontecer. Mas esse é o princípio da cultura: as diferenças em um espaço comum. Afirmar as diferenças, assumir uma postura ética diante desses acontecimentos, sustentar essa postura é uma saída possível. E é, em suma, uma luta constante. Não quer dizer que devamos ser “politicamente corretos”, não se trata de uma patrulha ideológica, nem de uma luta do bem contra o mal (mas, evidentemente, de aplicação da lei em todos os casos possíveis). O que não se pode fazer é conciliar as posturas discordantes, buscar um termo que fique bom pra todo mundo. Isso não existe. A conciliação (a ordem do progresso), nosso mito (maldito seja) da malandragem, escamoteia as diferenças. E com isso se dissolve a controvérsia, a diferença, sob um princípio de igualdade que, pelo andar das coisas, assemelha-se muita mais ao consenso do que à liberdade. Ou seja, você ao meu modo, ou nada feito. O progresso do tempo, o progresso técnico definitivamente não vem acompanhado de um “progresso da humanidade”. Não há um documento da cultura que não seja ao mesmo tempo um documento da barbárie, disse Benjamin. Não é a passagem dos anos que melhora nossa cultura ou nossa civilidade. Aprendemos pouco com a história que não cessa de se repetir farsescamente. O que faz com que a história se reescreva são as intervenções no continuum dessa linearidade progressiva para romper com a lógica dominante. Só há saída possível pela singularidade e não é uma saída pacífica, é uma luta, como disse Agamben: “onde quer que estas singularidades se manifestem pacificamente o seu ser comum, haverá um Tienanmen e, tarde ou cedo, surgirão os tanques armados”. Não é fácil enfrentar os tanques, mas é possível. É o que temos para 2010, que venha 2011 e que ele seja, em alguma medida, um ano novo.