O gosto pelos problemas (introdução à coluna)

Este é o primeiro artigo da seção Problemas, que pretende discutir a filosofia pelo que ela é, ou seja, um enfrentamento direto dos problemas que alimentam nossa vida e nossa ciência. Nada de longas descrições de teorias, biografias de filósofos gregos, terminologia incompreensível e assim por diante.

Faz meses que estou adiando o início desta seção. Imagino mesmo que o pessoal esteja estranhando, talvez tenham até pensado em cancelar o espaço e romper comigo. Eu entenderia. Então, para desviar o foco e o assunto, passo às explicações.

Estive pensando muito sobre como preencher este espaço que colocaram na minha mão. Não é fácil receber a missão de escrever sobre filosofia e escolher o melhor jeito de fazê-lo. Por outro lado, acabei concluindo que justamente essas reflexões cairiam muito bem como material do primeiro texto. Ainda mais agora, com essa excelente notícia da volta da matéria ao ensino médio brasileiro.

Com o olhar de afastamento que o tempo proporciona, penso que a escolha do nome da seção pode ter sido um equívoco estratégico. Com tantos problemas que já temos na vida, quem vai querer acessar uma coluna justamente com esse nome? "Problemas! Já bastam os meus", imagino dizer um leitor em potencial, já praticamente perdido. E ele está certo. Sou uma nulidade em estratégia de mercado. Acontece que me deixei seduzir por uma frase de Henri Bergson, um filósofo que nem está entre meus preferidos, mas que de vez em quando atinge o fundo das questões com dois toques de muita classe. Diz ele que, se você não consegue resolver um problema, é muito provavelmente porque não entendeu o problema e o formulou mal. Em outras palavras, as perguntas certas já são quase respostas. Perdemos tanto tempo procurando soluções para os problemas em que acreditamos e a que damos tanta importância, mas talvez devêssemos, em vez disso, repensar os próprios problemas. Ou seja, talvez devêssemos filosofar um pouco.

A segunda preocupação que tive foi com a carga que vem com a idéia de filosofia. Pelos comentários sobre a volta da disciplina às escolas do país, vê-se logo que o assunto é tenso e a vontade de entendê-lo, quase nenhuma. Como tudo na vida, alguns adoram a filosofia, outros a detestam, muitos escarnecem, uma infinidade de gente pensa que gosta porque confunde auto-ajuda barata com reflexão filosófica. Por último vêm os culpados pela má fama da disciplina, aqueles que, sofrendo de verborragia e delírios místicos, acham que são a reencarnação de Sócrates. A única coisa em comum entre todos esses grupos é que nenhum leva a coisa a sério. Nada mais insuportável, por exemplo, que os primeiros meses de um curso de filosofia na universidade. Uma sala apinhada de gente, metade querendo aprender, a outra metade querendo provar que os pensadores citados em aula não entenderam nada. E que determinados outros entenderam tudo. Enfim, pouco importa. Fato é que, ao final do ano, que digo, do semestre, essa turma toda já abandonou o curso, irritada com a exigência de argumentação e leitura, e foi buzinar nas orelhas de outrem.

Muito infelizmente, são esses que carregam consigo, por onde vão, a imagem de filósofos. Gente que pensa que é gênio, eis a figura popular do filósofo que sempre baixa nos botequins da vida (e a vida nada mais é do que os botequins que o vivente freqüenta). Pois como explicar aos que sofrem, assediados entre um copo e outro por esses enormes pentelhos, que um dos maiores aprendizados do estudo da filosofia é a inutilidade do gênio? Que o gênio só faz mesmo alguma diferença em condições raríssimas e improváveis? Impossível. Por outro lado, posso garantir que não é na filosofia que o gênio auto-intitulado encontra o campo mais fértil. E não sei onde é. Mas, como ex-economista e ex-estudante de jornalismo, posso apontar aí dois campos em que essa turma consegue que os colegas lhes lambam as botinas. Cá entre nós, não deve ser diferente em outras áreas…

Terceiro ponto que me veio à mente: a idéia (dita utilitarista [sic]) de que não há uso prático para a filosofia, que não serve para ganhar dinheiro, que não diz nada sobre a vida real. Sobre a utilidade prática, bem, não vejo em que ela seria menor do que a da física quântica, que, aliás, resvala em várias questões filosóficas. Sobre o dinheiro, compreendo a preocupação, obrigado. Mas o que rende não são áreas de conhecimento, mas ocupações. Ser economista, político ou lutador de artes marciais não dá dinheiro. O que dá é ser chairman do Fed, como Alan Greenspan, presidente dos EUA, como Bill Clinton, ou astro do cinema, como Bruce Lee. Mas, opa! Todos os três estudaram filosofia… Quanto à vida real, bom, prefiro reservar um artigo inteiro para esse assunto, mas já adianto que uma das maiores dificuldades da filosofia é justamente o fato de ela não ser e não poder ser puramente abstrata como, lá vai um exemplo batido, a matemática.

Foram, em resumo, esses três pontos de preocupação que me levaram a escolher a abordagem pelos problemas, muito mais do que pelos sistemas, doutrinas e teorias. Afinal, toda teoria é uma solução que se propõe a um problema. Por que perder tempo falando de grandes filósofos, com suas barbas e cabeleiras, se não sabemos nem sequer se os problemas de que eles tratam têm alguma importância? Quem vai querer ouvir uma explicação sobre termos técnicos como substância, essência, Dasein, devir, eterno retorno, mônadas e o diabo a quatro, se tudo isso, no fundo e na falta de uma noção clara do que está em jogo, parece conversa de desocupados?

Se, um dia, alguém inventou de filosofar, posso garantir que não foi à toa. Foi porque existem problemas, e eles estão na base de tudo que fazemos, não nos largam jamais, nem quando tentamos compreender o mundo, nem quando pintamos um quadro, nem quando falamos mal dos vizinhos, nem quando saímos para comprar peixe ou votar para deputado. Esses problemas, mais do que preocupações ou obstáculos, são o combustível da nossa existência, são aquilo que dá algum sentido à vida, se é que a vida precisa de sentido. Enquanto for assim, e sempre será, a filosofia simplesmente não poderá ser evitada.

PS: Mostrei este texto a algumas pessoas, que foram quase unânimes em pedir uma pequena lista indicativa dos tais problemas da filosofia. Mas não sei se é boa idéia, porque quem tentar fazer isso vai quase inevitavelmente cair em um de dois extremos: ou a terminologia hermética, ou palavras banais. Mas cedo um pouco: na minha humilde opinião, todos os problemas podem ser resumidas em uma única, terrível e insolúvel questão: o tempo. Trataremos disso!

Filosofia, problemas, questões

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Diego Viana