Quiáltera By newton lobo / Share 0 Tweet Há anos, ainda jovem, trinta e poucos por aí, já me havia retirado para um heremitério que finalmente libertar-me-ia dos ilusórios anseios que sempre afligiram minha mocidade, como de resto, a toda a humana idade. Pelo menos era nisso que tolamente cria. Nunca pretendí ser miraculosamente iluminado como um Buda, aos pés duma figueira ou mesmo dum cajueiro, fruta regional mais apropriada a esta narrativa, não, nunca tive tal pretensão, mais apropriada aos santos e iluminados orientais. Sabia que qualquer mudança mental e espiritual demandaria um bom tempo até ser atingida, e no meu caso, como sou mais retardado que a maioria, levei quase dez anos até poder dizer: “Estou medianamente amadurecido”. Amadureci mesmo, após uma dezena de longos anos de vida monástica num sítio de um único habitante, por isso costumo chamá-lo de heremitério. Amadureci. Só não sabia que frutos maduros caem, despencam das alturas, esborracham-se no solo e apodrecem… Nunca mais voltei às cidades, nunca mais… Também não virei santo, longe disso, aprendi a deplorar todos os santos e todas as religiões. No meu cantinho, na minha cela, sobre meu singelo catre aprendi a proteger-me da lascívia e lubricidade com tanto rigor quanto das virtudes pudicícias humanas. Anteriormente a esta fase de reclusão, cultivara uma bela amizade de anos com um jovem também inconformado com as injustiças aparentes desta ilusória realidade. Discutíamos com freqüência sobre assuntos de gravidade, sempre no âmbito das filosofias e das religiões. Um bom amigo, que, na realidade, ajudou-me a suportar o fardo da existência durante alguns penosos anos, hoje percebo. Pois bem, durante minha permanência no heremitério, recebi, certa feita, a visita desse amigo que muito me alegrou, e, não osbtante muito espanto me causou. Havia-me internado naquele monastério individual havia cerca de dois anos, por aí, e como as visitas eram raríssimas, só o fato de ter com quem conversar por alguns dias sobre o que mais gostava, filosofia e música, me enchia de alegria. Chegados a este ponto devo fazer uma pequena advertência: porque me refiro àquela reclusão como heremitério, não entendam que vivia circunscrito a um quarto, rezando, recitando mantras ou praticando outras loucuras místicas, ao contrário, vivia em completa comunhão, ou, pelo menos tentava, com a Natureza (representação da Força Criadora; o Princípio Essencial; o Correspondente da Realidade no mundo dos fenômenos, como dizia meu avô, depois falo sobre isso). Durante essa visita, em pleno período chuvoso, divertimo-nos a valer, pescamos, nadamos, mentimos, bebemos e embriagamo-nos quase diariamente. Por fim, o bom amigo confidenciou-me suas intenções para o futuro, o que foi a razão do meu espanto, como vos declarei acima. Ora, o amigo revelou que resolvera abraçar a vida monástica, não fajutamente como eu próprio o fizera. Já homem maduro, comerciante, bem estabelecido, resolvera que entraria realmente para uma confraria onde levaria absoluta vida reclusa dedicada aos estudos, à meditação e sem nenhuma compensação financeira. Pessoalmente, considerei que o amigo ficara louco, uma coisa é você viver num sítio, realizando técnicas de meditação aqui e acolá, observando o passar das horas, dos dias, escutando a Voz dos Passarins, filosofando, balançando-se em fresca rede de algodão, tocando, escrevendo… Outra é você viver num seminário. Seminário católico. Cativo de normas rígidas, mormente contrárias à própria natureza humana, escravo de regras questionáveis e absurdas numa rotina castradora deprimente. Eu mesmo, durante minha juventude, tive a infeliz oportunidade de estudar em semi-reclusão, num monastério onde funcionava o seminário provençal aqui da minha cidade, seminário católico, onde conhecí com intimidade o cotidiano de padres, religiosos, monges e reclusos, tudo isso por conta da educação “causada” por pais, avós, e toda uma parentela de judeus convertidos superficialmente ao Cristianismo e profundamente ao livre-pensar, compungidos que foram pelas suas próprias fogueiras inquisitoriais interiores. Taxei, incontinenti de loucura, a pretensão dum livre pensador em abraçar com integralidade a vida monástica católica, sem antes provar-lhe, em pitadas, o fel! Abreviando, para não enfadá-lo muito, amigo e paciente leitor, devo dizer que o bom amigo, que agora é padre numa capital do Sudeste brasileiro, com várias formaturas e detentor do divino dom da oratória, além da sua admirável inteligência e vasto acervo intelectual, há muito abandonou a reclusão e seus votos de pobreza, se é que algum dia os teve. Vive bem, come bem, veste bem, e já deve ter juntado um bom dinheirinho, pelo menos é o que aparenta, por ocasião de suas visitas anuais aqui à terrinha e à minha pessoa. Muito bem, estás de parabéns Padre (…) bom amigo. Quanto a mim, a minha reclusão fajuta cedo findou, ganhei dessa experiência, como bônus, a adaptação ao campo, coisa que nunca tive, apesar de descender de gente do campo. Hoje me considero, integralmente, cidadão interiorano. Matuto, profundamente matuto, rastreio qualquer criação no mato, e sei, até pelo estado das fezes dele, se o bicho está longe ou perto, se vai, ou se vem, se corre ou se vagueia, monto qualquer animal e domino no laço, sem dificuldades, qualquer touro ou boi ou burro ou vaca. Bem, pelo menos há até bem pouco tempo, uns dez anos talvez… Bom, pra mim, que na juventude sonhara com as salas de concerto internacionais, montar e dominar, no pêlo, um animal é, no mínimo, um acontecimento extravagante… Bem, passaram-se anos até que vislumbrei uma parte da realidade, e parte dessa realidade é que não importa onde estejamos para venerar o Autor da Criação através da meditação: num templo; numa grande cidade; num belo campo, a sós, em meio à multidão, em qualquer lugar, até mesmo num monastério católico, podemos e devemos estar em eterna comunhão com o Criador através de sua obra, preferencialmente aquela que nos circunda, e a música, muito mais que doce enlevo para a alma, serve-nos como poderoso auxiliar na elevação espiritual derivada da correta sintonia mental e conseqüênte contato com o criador. Muito mais extraordinário que o momento prazeroso da manipulação de cordas e martelos de teclados, é o momento de criação ou apenas de execução ou ainda, apenas a audição daquilo que nos levará a plagas longínquas e paradoxalmente tão próximas, por íntimas e pessoais que são. E o homem, mormente o homem culto e de gênio, há muito sabe disso. Não é à toa que secularmente existe, em todo mundo, fruto das mais diversas culturas, antigas e modernas, uma variedade de Músicas escritas e executadas com o fim específico da meditação, na tentativa de comunhão com os Elementos, com os Seres Invisíveis Superiores, enfim, com o Grande Compositor. Chinesas, japonesas, tibetanas, indianas… Para onde se vá, há Música transcendental. Agora, geralmente crê-se que só o mundo oriental é detentor dessa característica e, tolamente esquecemos daquela forma ancestral de música ocidental há séculos utilizada, e, com frequência, em rituais religiosos tradicionais, uma linda forma coadjuvante ocidental de meditação: “O Canto Gregoriano”. O Cantochão, para ser mais exato. Por sua unicidade vocal, ou seja, pela monofonia ou linha melódica em uníssono, e pelas suas letras, geralmente trechos das escrituras hebraicas ou até gregas cristãs, criam um ambiente formidável para a prática da meditação, da contemplação, sob qualquer formato e corrente filosófica. É realmente musica transcendental auxiliar na prática meditativa. O Canto Gregoriano é a mais antiga forma de expressão musical do mundo ocidental e teve sua orígem no canon judaico. Tanach (Mikrá), é este o canon, ou seja, é um conjunto composto pela Torá pelo Neviim e pelo Kethuvim, este último constituido por onze livros, dentre eles, os Salmos, atribuídos a Davi. É o primeiro dos Sifrei Emet ou, livros Poéticos: Salmos; Provérbios e Jó (Tehillim,Mishlei e `Iyyov). Na verdade eram oraçoes cantadas ou recitadas, em que o principal recitava certo trecho, indicando, em seguida, que tal frase deveria se repetida pelos demais, sempre em uníssono. É música devocional acompanhada de profundo conteúdo mistico. O que é extremamente interessante, devemos ressaltar, é que a recitação dos Salmos é, ainda hoje, prática corrente nas três “religiões mais importantes do planeta” , uma vez que, sendo prática da liturgia Judaica, também o é, de forma adaptada, na católica e mulçumana. Claro que o caráter de estilo fugiu muito da sua estrutura rigida primordial com o passar do tempo e, hoje em dia, exceto em alguma sinagoga, dificilmente recita-se um Salmo em plenitude de pureza textural, e aí está a semiótica como testemunha formal do que digo. O Cantochão, portanto, desde que foi codificado e estabelecido como canto litúrgico, no Século VI, tem se modificado e se adaptado aos tempos de tal forma que até acompanhamento de instrumentos como o órgão já recebeu, mas, o que pode parecer meio esquisito, uma forma musical originalmente constituída de uma única voz (mesmo porque nem existia o contraponto) ser em determinado momento acompanhada por um belo, sonoro e moderno acorde maior, passa a ser salutar e dignificante, uma vez que, no fundo, estruturalmente o que esta antiga forma musical modernizada pretende é simplesmente a comunhão, ou (mais de acordo com a modernagem), a sintonia vibracional do ser com seu criador, do Criador com sua Criatura. Pode existir conceito, reflexão ou pensamento mais judaico que este? Bem, agora que sabemos que pouco importa o ambiente em que estejamos, e que realmente importante é nosso estado vibracional, ou seja, nosso estado mental referente a uma determinada posição atingida através do desenvolvimento espiritual, podemos vislumbrar tudo o mais que nos cerca, no mundo fenomênico, com esta sereníssima claridade meridiana que nos diz que a busca do zen Budista pode ser a mesma do seminarista católico, desde que haja, em ambos, elevação espiritual suficiente para a comunhão integral com o Cosmo. Como não sei encerrar um texto sem oferecer pelo menos um exemplo daquilo a que me referí. Na música isso é essencial, ademais não conheço melhor forma de discernir sobre determinada música do que ouvindo-a, não é? Sei que o amigo leitor desta coluna é por demais escolado na lida musical erudita, integralmente e até de sobejo, porém, e só como exemplo (pois sempre há os novos e seus afãs em aprender) deixo a seguir alguns links, disponibilizados graciosamente pelo excelente christusrex.org. São Ordinários de Missa Católica. Ordinários são o kirie, gloria, sanctus e agnus utilizados durante as celebrações da liturgia Católica. E aqui já venho novamente com esse palavreado didático que tanto tento suprimir… Fiquem, portanto, com esses pequenos mas excelentes exemplos de Cantochão ou Canto Gregoriano, gravados “ao vivo” no Mosteiro de São Bento SP. Esperamos que essas transcendentais melodias sirvam como evocação aos elevados seres espirituais, que em uníssono, sempre estão dispostos a acudir-nos, sob qualquer denominação! Gloria in excelsis Deo Et in terra pax hominibus bonae voluntatis. Ecce nomen Domini Emmanuel Panis angelicus I Veni Sancte Spiritus Veni, creator