Um Epitáfio Para a Razão

A razão moderna está em crise, a razão moderna está morta: filha e ao mesmo tempo artífice da modernidade, a razão absoluta, deificada por si mesma, deu seus últimos suspiros nos colapsos do século XX, dos campos de concentração à bomba atômica. Mas é preciso anunciar sua morte, porque há aqueles que se recusam a ver…

 

 

Não vou acender incensos, nem luzes de fogos variados, porque essa morte não é de agora, foi uma morte anunciada e lenta, milênios se arrastando em direção a um túmulo guardado em criptas secretas, para que não se abalassem os fundamentos do mundo: estou falando da morte da razão.

Isso não é nenhuma espécie de paradoxo grego, numa coluna de filosofia falar contra a razão; é que há razões e razões; a razão que agonizou e que agora jaz putrefata é a razão absoluta, que se erigiu como mito para si mesma, que se determinou como árbitro solitário de seu próprio discurso, que determinou para si uma práxis que se quis inquestionável.

Sou totalmente a favor da razão, aliás, da racionalidade, da construção de uma semântica própria para vida, do estabelecimento de metas para o próprio funcionamento cultural do viver (porque não podemos fixar metas para nossa biologia nem fisiologia); mas temos de ter claro que a razão, praticada pela consciência, não é o único instrumento, nem a única parte do nosso ser que determina o que somos: a consciência é somente uma, entre tantas partes do que somos e do que vamos vir a ser.

Nem tudo pode ser apreendido pela consciência, nem pela ciência; ou, invertendo a proposição, tudo pode apreendido pela ciência, mas a cada fato apreendido, novas perguntas se abrirão, novas portas, novas interrogações, que nem a mais clara lógica conseguirá determinar qual caminho se abriu ou qual porta se fechou.

Nesse sentido, a razão absoluta é demarcada por vários limites naturais ao próprio aparato conceitual do homem, aos limites sensoriais, aos processos racionais em si, limitados por uma razão que depende,invariavelmente, dos sentidos, ou da lógica por ela mesma formulada. Certo que a ciência cresce muito para dentro – muda sua própria base epistemológica, aprofunda conceitos, aos quais a racionalidade humana tem que acompanhar.

Mas o pensar não é uma tarefa exclusiva do sujeito nem da mente: como diria Nietzsche, muitas vezes, somos pensados, não pensamos; e não há unidade interior, não há um eu, mas milhares de eus; como também há outros sentires e agires do corpo que também participam na elaboração de conceitos, na atitude do pensar.

Qualquer racionalidade, qualquer ciência do sentido do homem tem que levar em consideração essa natureza inteira do homem, sua constituição total, seu ser interior múltiplo: seus instintos, seus pensares e sentires, seu corpo; a consecução da liberdade interior só pode se conquistada se ela for uma aposta no todo do homem e não somente um exercício da razão; a liberdade que desconsidera a natureza aparentemente irracional do homem, nunca consegue se realizar.

Porque não há elementos irracionais, não há irracionalidade: a natureza já é dotada de seus próprios sentidos, como bem nos alertou Merleau-Ponty, sem que precisemos acrescentar nada ao que ela produz para que tenha sentidos.
Assim também com nossa própia natureza: nosso corpo, nossa psique. Ela já possui seus próprios sentidos; nós que precisamos compatibilizar nosso senso lógico-racional com essa natureza.

Mas a razão que jaz em túmulos terríveis é a herança funesta da razão burguesa, do ideário iluminista, que deificou a razão, num evidente contra-senso: luta-se contra as superstições e deifica-se a razão…
Foi essa razão iluminista que instrumentalizou as conquistas do capitalismo, a dominação violenta e vil da natureza, a subordinação externa e interna do homem, e que nos trouxe a essa cilada da história, que é um modo de produção que leva o planeta ao esgotamento pela entropia crescente que gera no sistema.

Assim como conduziu o homem a um adoecimento permanente, pelo afastamento de sua própria natureza interior, pela violência com que afastou o homem de seus ritmos, de sua cadência própria, de sua própria harmonia…

A regra é aceitar que não há regras, não há cânones, a não ser aquele que diz que o único universal é o particular, e que o homem é uma unidade múltipla aberta.

Mas não houve funerais públicos para essa razão caduca, porque há aqueles que ainda acreditam nela, apesar de todas as evidências concretas; essa razão é tão cega que nem consegue ser empírica ao ponto de verificar sua própria falibilidade a partir de seus resultados, ela vai contra as evidências; é uma deusa cega, e como todo deus, se recusa a morrer.

Mas nós gritamos sua morte, quiçá tardia, para todos os cantos do mundo, para os ouvidos que se recusam a ouvir, para as vozes que se calam, para aqueles que não querem ver, para os que defendem o absurdo da existência atual, apesar de todas as evidências de que é preciso ir além dessa razão, assim como é sempre preciso ir além de si mesmo…

A razão está morta! Viva a razão…

Palavras-Chaves: Morte, Razão, Filosofia, Ciência, Epistemologia

 

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Gledson Sousa