Ronda Noturna 2.0 By Marcos Schmidt / Share 0 Tweet A mais difícil das imagens é a imagem de si. Não trato aqui da imagem pessoal, individual, de cada um de nós (essa, por si só, terrivelmente complexa), mas a imagem que fazemos de nós mesmos enquanto brasileiros. Como nos vemos? Como povo (ou massa) alegre e risonha. Somos otimistas e solidários. Somos resilientes e não desistimos nunca. Somos um exemplo de civilização tolerante, na qual o amálgama das mais diferentes etnias e culturas acontece natural e harmonicamente. É bem isso: somos alegres, solidários e vivemos em paz e harmonia. Cantamos “eu sou brasileiro / com muito orgulho / com muito amor” com olhos fechados e mão no peito em dias de jogos da seleção. O que estraga o Brasil são os políticos… Há um hiato entre os nomes e as coisas. Entre as coisas e sua imagem. Oscar Pereira da Silva, pintor acadêmico dos fins do século XIX, é autor de Escrava Romana. Não foi datado, mas certamente foi pintado na última década dos Novecentos (hoje se estabelece que foi pintado em 1894). A escravidão que Pereira da Silva conheceu foi, ao menos oficialmente, extinta em 1888. Mas é melhor tratar da escrava romana, branca e distante, do que da escrava brasileira, negra e tão próxima. É aquela coisa d’A Escrava Isaura, de Bernardo Guimarães, que precisa ser branca para encontrar alguma empatia entre os leitores brasileiros. Não gostamos de saber que viemos da taba, que viemos da senzala. Queremos a herança europeia, a herança que nos torna mais brancos. A pintura abaixo, a famigerada A Redenção de Cam (1895), de Modesto Brocos, é um triste registro desse desejo: em três gerações a herança negra seria extirpada. O Brasil, enfim, se tornaria europeu. Olavo Bilac escreve sobre o quadro, em seu inconfundível estilo: Vede a aurora-criança, como sorri e fulgura, no colo da mulata – aurora filha do dilúvio, neta da noite. Cam está redimido! Está gorada a praga de Noé! Não gostamos de nos ver como somos, e somos outra coisa que não alegres, simpáticos ou tolerantes. Somos autoritários: é o legado mais óbvio dos 500 anos de relação senhor/escravo que nos permeia. Somos corporativistas: numa cultura em que todos desconfiamos de todos, e que alguns são mais iguais do que outros, é muito tentador agarrar-se a uma guilda qualquer, porque nela há a promessa da igualdade faltante. E somos violentos: a brutalidade irrompe entre nós com insuportável constância, sendo o próprio Estado o maior perpetrador de violências. Acaba sendo fácil compreender porque não gostamos da imagem que vemos no espelho. Ela é por demais perturbadora. Pedro Alexandre Sanches argumentou corretamente num texto sobre Roberto Carlos, o mais brasileiro dos nossos ídolos: Em outros termos, a rejeição à própria origem não é (ou foi) um de nossos trágicos traços distintivos nestes 50 anos de reinado do capixaba do Itapemirim (percebe os nomes indígenas?), tempos de ditadura e tal e coisa? Minha hipótese é de que, sim, e não é por outra razão, que RC passou tanto tempo disfarçando brasilidades atrás de iê-iê-iês, baladas à Tony Bennett, hinos gospel. E conquistou fãs suburbanos sulistas com os primeiros, românticos interioranos nortistas e nordestinos com os segundos, católicos e evangélicos e candomblezeiros com os terceiros. Enquanto isso, em Gotham City, uns e outros ficaram disfarçando não gostar de seus boleros e assoviando só no chuveiro seus temas de motel, tal qual Waldick Soriano dizia acontecer com socialites que volta e meia apareciam em seus shows. Enquanto escrevo, ouço, pela janela, um nóia gritando, surtado. É outra lembrança daquilo o que gostaríamos que não fosse, que não existisse. Mas existe e grita.