Ronda Noturna 2.0 By Marcos Schmidt / Share 0 Tweet No milênio passado, um conhecido tentou me convencer a ser um membro da Amway. Era uma mistura de empresa, clube e seita: vendia produtos de limpeza e tentava-se atrair mais membros, numa confusão que lembrava o esquema de pirâmide. O sujeito deixou comigo uma quantidade enorme de fitas cassete para ouvir. Não lembro exatamente do que tratavam. Eram palestras motivacionais, ou coisa do tipo. Não quis aderir e esse conhecido não ficou muito feliz. À parte alguma grosseria, ficou incomodado com os livros que eu tinha. Afirmou que, na Amway, havia aprendido a ler bons livros, não esses que eu tinha. Bons livros, segundo ele, eram livros de auto-ajuda e livros religiosos, livros que não tratariam de mentiras nem fariam a mente vagar sabe-se lá por onde. Nos despedimos e nunca mais soube dele. Lembrei dele e dos seus bons livros nesses dias: assistia, via facebook, a uma palestra de um grande escritor brasileiro falando sobre Memórias Póstumas de Brás Cubas. Havia dez pessoas assistindo on-line a tal palestra que era exibida ao vivo. Dez pessoas. Grandes redes de livrarias quebrando, tiragens de livro cada vez menores, leitores (ainda) mais escassos. Lia-se pouco, lê-se ainda menos. Recentemente, comprei um livro de certa editora que numera os exemplares da edição. De uma tiragem de mil exemplares, o meu era o de número 46. Suponho que, a essa altura, devam ter vendido uns 50 exemplares do tal livro. E claro que esse não é um bom livro, que não leio coisas dessa laia. É livro incômodo e perturbador, como os livros devem ser. Cenário tétrico, esse o nosso. Mesmo antes do ex-capitão eleito presidente, livros sempre foram objetos alienígenas entre nós. Objetos radioativos, na verdade. São evitados, são desprezados, são coisas chatas, são calço para mesa bamba. Qual o livro que mais fez a sua cabeça? A essa pergunta usualmente se seguirá um momento de hesitação e silêncio, como se houvéssemos perguntado algo indiscreto ou muito irrelevante. A resposta, se resposta houver, será algo girando em torno de bíblias, de zíbias gasparettos, de paulos coelhos, e alguns outros assemelhados. Uns, sentindo-se já liberados para exibir sua estupidez titânica, afirmarão sem nenhuma vergonha, por mais incrível que isso possa parecer: Olavo de Carvalho! Os livros são objetos transcendentes, mas podemos amá-los do amor táctil que votamos aos maços de cigarros, cantou Caetano Veloso. E por acaso me lembro de que o autointitulado filósofo e paranoide Olavo de Carvalho nutre esse amor reificado pelos maços de cigarros. Naturalmente que, sábio como ele só, Olavo não teme a possibilidade de um câncer de pulmão, já que essa ligação espúria entre câncer e tabagismo é coisa do foro de São Paulo e do comunismo internacional. Os livros – que, ainda de acordo com Caetano, são como a radiação de um corpo negro apontando para a expansão do universo – não serão queimados em nossa terra. Não haverá necessidade disso. Serão extintos por falta de uso. Restarão, quem sabe, apenas os bons livros. E os livros de Olavo de Carvalho, que, esses sim, serão úteis como calço de mesa velha.