O tipo do poder

A tipografia é uma arte que, caso tudo tenha sido executado com excelência e rigor, passará despercebida. Quão melhor seja, mais invisível é. Uma definição clássica é a de que a tipografia serve para honrar seu conteúdo. Outra definição, mais grosseira, postula que o tipo é a roupa com que se veste um texto. Um indivíduo de smoking numa celebração formal estará tão mimetizado no ambiente que poderá até passar despercebido. Caso esteja usando regatas, bermudas e havaianas nos pés, será o elefante do salão.

O estilo tipográfico é a face de um texto. É sua imagem, percebida antes mesmo da leitura do próprio texto.

A era dos computadores pessoais transformou todos os usuários de um editor de textos em tipógrafos instantâneos. Uma arte que até então era exercida por profissionais lapidados por anos e anos de trabalho intenso e especializado tornou-se um parquinho de diversões para todos nós que usamos o Word.

A imagem do sujeito de bermudas e havaianas na cerimônia de entrega do prêmio Nobel não é absurda. Lembro do anúncio da detecção das ondas gravitacionais pelo LIGO, há alguns anos. O press release despachado usava o famigerado Comic Sans, um tipo pensado para textos curtos, informais e infantis, que tenta imitar – e fracassa – o estilo de letra dos balões de histórias em quadrinhos, além de ser um tipo detestado por 11 em cada 10 designers.

Uma característica interessante do mal-uso dos tipos é que esse uso equivocado pode revelar o inconfessável. Penso num tipo que se chama Trajan, criado em 1988 por Carol Twombly. É um tipo cujo desenho é inspirado pelas letras gravadas na base da coluna de Trajano, em 113 d.C. Baseado num estilo que reflete as ambições imperiais de Roma, é um tipo sofisticado, definitivo, mas ao mesmo tempo duro e pesado, que usa apenas versais (as letras maiúsculas). É a roupa oficial do texto do império romano. É o tipo que exprime a vontade de ser império, de avançar e de conquistar tudo o que esteja em seu caminho ou que ele, o império, deseje e cobice. É o tipo que expressa o Poder[1].

E, veja você, minha rara leitora, meu raro leitor: quem, em nosso século XXI, em nossa Terra Papagalis, faz uso do imperial tipo Trajan?

Igrejas! Igrejas mil! As mais diversas facções evangélicas, bem como alguns ramos mais toscos da igreja católica, utilizam o tipo Trajan até a náusea em suas publicações e impressos. Em pôsteres, brochuras, livros, folhetos, em tudo o que se imaginar, lá estará, honrando o seu conteúdo, o tipo mais característico do império romano.

A contradição e o ato falho são evidentes.

A contradição: cristãos fazendo uso de um desenho que é expressão da ideologia do império romano, aquele que teria perseguido e assassinado tantos praticantes da nova religião.

O ato falho: vaza a intenção das igrejas de dominar, de submeter, de subjugar, de escravizar, de ser império e aplicar seu arbítrio a todos os que caminham e respiram sobre a Terra.

Igrejas amam o poder. Igrejas querem ser o poder – absoluto, incontestável, se possível for. Está aí o Trajan para não deixar nenhuma dúvida.

[1] Não por acaso, é o tipo oficial utilizado nas campanhas do Partido Republicano nos EUA.

About the author

Marcos Schmidt

Marcos Schmidt é designer gráfico e ilustrador. Vive e trabalha na irremediável cidade de São Paulo.