Garrafas ao Mar By Deodato Rivera / Share 0 Tweet Quase dois séculos depois do Grito do Ipiranga e quase doze décadas após a Proclamação da República, o Brasil continua enfrentando os desafios de construir-se como nação madura e justa, “mãe gentil” para todos os seus filhos. Em nossa vida política, por exemplo, ainda estamos muito longe de uma democracia autêntica, plena e participativa, sem a qual os sistemas econômico, social e cultural não se podem desenvolver satisfatoriamente para atender com eqüidade às necessidades da população. Quase dois séculos depois do Grito do Ipiranga e quase doze décadas após a Proclamação da República, o Brasil continua enfrentando os desafios de construir-se como nação madura e justa, “mãe gentil” para todos os seus filhos. Em nossa vida política, por exemplo, ainda estamos muito longe de uma democracia autêntica, plena e participativa, sem a qual os sistemas econômico, social e cultural não se podem desenvolver satisfatoriamente para atender com eqüidade às necessidades da população. De fato, os sintomas da doença juvenil do nosso sistema político saltam à vista, dramatizados pelas suas quatro grandes crises: a crise ética, a das instituições do Estado, a do sistema eleitoral e a da cultura política em geral, todas interligadas e interdependentes. Para superarmos essas crises precisamos de uma grande mobilização da vontade nacional. Ora, quem olhar apenas a superfície do oceano político brasileiro dirá que essa mobilização é impossível, ou pelo menos altamente improvável. Contudo, nas correntes profundas da alma nacional acumula-se a nosso ver uma força capaz de realizá-la. Essa força insuspeitada ocorreu em algumas circunstâncias históricas no século passado, como, por exemplo, na convulsão francesa em maio de 1968 e na “perestroika” soviética, que mudou o mapa geopolítico mundial no final da década de oitenta. Os observadores que só percebem a superfície da vida dos povos às vezes são surpreendidos com o tonitroante BASTA! de uma parte significativa da cidadania a tantos profissionais da política que infelicitam e envergonham os povos com sua desmedida ambição de poder pelo poder, sua falta de ética, sua demagogia e o seu descompromisso com os verdadeiros interesses da população. Como observador da realidade brasileira vislumbro no horizonte das possibilidades nacionais uma mobilização sinérgica de vontades e ações – que podemos chamar de REVOLIÇÃO BRASILEIRA, uma nova vontade cidadã –, baseada na transparência, na intercomunicação e na participação ativa e de tipo novo de um grande contingente de pessoas, hoje ainda passivas mas prontas para articular-se com aquelas que, de algum modo e há muito tempo, já atuam na direção revolicionária. Vejo como finalidade maior dessa Revolição o aperfeiçoamento do nosso sistema político, tornando-o capaz de ajudar o Brasil a finalmente vencer os determinismos da nossa formação histórica (colonialismo, massacre dos povos indígenas, escravidão, capitalismo tardio e predatório), até hoje presentes de algum modo na gigantesca enfermidade civilizacional que o paradigma político vigente e muitos políticos profissionais representam e perpetuam. Ao contrário das revoluções, essa Revolição possível não seria liderada de cima para baixo – dos planaltos para as planícies – mas de baixo para cima. Com efeito, nos partidos políticos e nas instâncias governamentais não se notam muitos líderes servidores que consigam perceber e estimular as “correntes profundas” da cidadania brasileira em sua tarefa transformadora e civilizatória. E isso porque, fascinados pelo poder, muitos dos nossos políticos não conseguem ver além dos seus umbigos personalistas, dos seus interesses patrimonialistas, dos seus projetos de carreira política. Os políticos desse tipo buscam cargos, não encargos, servir-se do poder, não servir aos cidadãos. Seus apetites estão sempre exacerbados pelo horizonte eleitoral: mal saem de uma eleição, vitoriosos ou não, e já tudo fazem, malfazem ou não fazem em função do próximo pleito. E o dizem sem pejo, com desfaçatez. São em sua maioria “guerreiros” políticos, inebriados, viciados pelo poder, “caçadores” de postos de mando, prebendas e prestígio na máquina do Estado em todos os níveis – municipal, estadual e federal. Para esses personagens a política é a guerra por outros meios, sem idealismos nem escrúpulos. Competem vorazmente entre si pelo botim da fatia do Estado que lhes toca dirigir, ou na qual legislam, com freqüência como verdadeiros traficantes de influência. Aventureiros e oportunistas sem espírito público, esses políticos não se desempenham autenticamente como servidores do povo. Este só lhes interessa como eleitorado passivo, a iludir-se periodicamente, a peso de milhões, com as pirotecnias da propaganda política enganosa, a “marquetagem” contra a qual infelizmente ainda não existe nenhum Procon… Apesar das aparências de conformismo, sinto em nosso país uma ainda informe, porém potencialmente poderosa, vontade de mudança tomando corpo no mais profundo substrato da alma nacional. Sinto bem possível o surgimento de uma original e complexa mobilização de pessoas, grupos, organizações e redes – criadora de uma nova forma cidadã de fazer política. Se ocorrer, essa mobilização cidadã atravessará todas as barreiras de condição social, crença religiosa, partidos e convicções políticas e ideológicas, saberes, poderes e fazeres de todo tipo. Será uma ampla articulação das nossas quatro grandes tribos dispersas: da ação, da fé, das artes e do conhecimento. Uma sinergização de vontades e capacidades como nunca se viu na nossa História, em que cada revolicionário fará o que estiver ao seu alcance, florescendo “onde estiver plantado”, segundo o princípio de que “no serviço da Pátria há lugar para todos”. Esse processo transformador se caracterizaria por ser sem ódio nem desrespeito a pessoas, mas sem complacência com as ações daqueles e daquelas que, em seus cargos e mandatos públicos, estão traindo os interesses e os ideais do nosso povo na construção de uma Nação digna, justa e solidária – essa com que tantos enchem a boca nas campanhas eleitorais e que depois esquecem, pois mal lhes sobra tempo para encherem os bolsos com as cobiçadas mutretas do poder, ou para inflarem-se os egos com as suas ambicionadas pompas e mordomias. Mais do que um sonho e menos do que uma profecia, essa Revolição possível que vislumbro, se efetivada, significará a tomada de um poder novo, de baixo para cima: o poder inspirador e co-inspirador, o poder fiscalizador dos cidadãos comuns, o poder-serviço, baseado na força transformadora da presença ativa dos cidadãos sem poder formal no cenário político, no interregno entre as eleições. Esse poder novo, horizontal e policêntrico, restaurador da construtividade política e social, sem ódio nem violência, será exercido, criativa e permanentemente, por amplas camadas da nossa cidadania, constituídas principalmente por jovens, com sua capacidade de entusiasmo e dedicação — sua paixão –, por idosos, com sua experiência de vida — sua lucidez — e seu tempo disponível, a ser aproveitado a serviço da Nação, e por mulheres, com sua intuição e seu compromisso com o cuidado e a proteção da vida — sua amoratividade. Portanto, paixão lúcida e amorativa, e ação criativa, justa e restaurativa da construtividade política e social seriam os instrumentos anímicos fundamentais dessa possível Revolição Brasileira. Se olharmos bem, ela de certa forma já começou, em ponto pequeno e seminal, nas diversas redes e ações prefiguradoras, nos corações e nas mentes, na indignação e na revolta dos que não aceitam mais ver a vida e as instituições políticas brasileiras jogadas na lama da corrupção e do carreirismo, do cinismo narcisista, da insensatez e da ignorância arrogante erigidos em norma da ação de um considerável número de políticos. Quem viver, e participar, verá. _________________________ (*) “Revolição” é um neologismo usado por primeira vez em 1982 e divulgado pelo pedagogo Antonio Carlos Gomes da Costa em alguns de seus escritos, como por exemplo, no começo desta década, em “Revolição, a revolução da vontade” e “Revolição” (ambos da Ed. Fundação Educar DPaschoal, São Paulo, sem data). Desses trabalhos extraímos os seguintes trechos : (1) “Para designar esse fenômeno de mudança social molecular e evolutiva baseada na ação de pessoas, vivenciando a vontade e o espírito de servir de modo consciente e livre, veio-me à mente a palavra “REVOLIÇÃO”, criada pelo Professor Deodato Rivera para designar a atuação da pessoa automotivada e comprometida com os processos de mudança social a partir da base da sociedade” (A.G.Gomes da Costa) e (2) “Revolição não é uma revolução. Não precisamos de mudanças radicais ou movimentos violentos para melhorar o Brasil. …. A justiça, a democracia plena e o desenvolvimento sustentável somente serão realidade quando houver uma revolição, ou seja, uma mudança social gradativa que reflita a liberdade de cada um na construção dos conceitos de cidadania e responsabilidade social. A revolição acontecerá em dois tempos. No primeiro, os indivíduos devem ser sensibilizados para acreditar que é possível uma ação solidária em favor do bem comum. No segundo, deve ocorrer a mobilização de forma contagiante. As pessoas vêem seus horizontes ampliados, multiplicam suas ações e conquistam mais pessoas para lutar pela causa” (Luís Norberto Pascoal). (**) Deodato Rivera (deorivera@terra.com.br), 73 anos, é formado em Filosofia no Brasil e pós-graduado em Ciência Política no Chile. Conferencista e escritor, trabalha atualmente na formação de líderes servidores, sob o prisma de uma visão do desenvolvimento humano integral e auto-sustentado (DHI).