Uma Tangerina, Um Cosmos

A percepção do mundo e a percepção de si mesmo são atos do conhecimento. Conhecer é fragmentar a totalidade para depois tentar recuperá-la… Só não conseguimos ter a percepção exata do que somos, conhecer a totalidade de si mesmo é uma impossibilidade…

A forma é a de uma esfera quase perfeita, levemente achatada nos pólos: não estou falando da terra, mas de uma tangerina.
Sei que a forma é minha percepção – aliada à memória do conceito, que em mecanismos tão sutis e velozes me indicam que a tangerina tem a forma de uma esfera. A forma não está presente no objeto, a forma está presente em mim como conceito, aliada à percepção que tenho do objeto. Não há uma ‘esfericidade’ inata à tangerina, mas há uma forma ‘quase’ inata à percepção da tangerina; digo quase porque sóquando adquirirmos a noção de esfera é que aplicaremos a mesma à tangerina. Intellectus ad rem. Adequação do conceito à coisa.
Ainda assim, isso não me afasta da surpresa infantil de perceber, na tangerina, um objeto, uma coisa natural dotada de tanta simetria (simetria também é conceito), uma forma tão acabada, dotada de equilíbrio, regular. Vista de fora, a tangerina apresenta-se numa forma esférica, levemente achatada nos pólos, coberta por uma casca cuja cor vai de um quase amarelo ao mais belo laranja, de modo que às vezes um único fruto apresenta essas transições de cor de modo sutil; ao tato, a casca da tangerina apresenta uma rugosidade leve, perceptível aos olhos como pequenas saliências marcadas por pontos mais escuros no centro; entre a casca e o interior, há uma pequena rede de vasos brancos a envolver os gomos: assemelham-se a raízes ou veias brancas mesmo. Sob essa rede, há uma série de gomos dispostos em torno de um centro quase totalmente oco: há uma parte da rede que se desenvolve como eixo, interligando toda a rede, criando uma unidade entre as partes; os gomos têm uma forma de meias-luas, o que garante a total coesão da esfera. Uma fina película cobre os gomos: sob a película, pequenas células guardam suco; próximo do eixo central, as sementes agrupam-se, de modo que todas, mesmo que em gomos diferentes, ficam próximas umas das outras.
Essa é uma descrição um tanto rápida da tangerina; durante todo o tempo, utilizei-me de conceitos para descrevê-la: interior/exterior, esfera, eixo, rede, casca, película – são conceitos, não propriedades inatas do objeto; são atributos os quais minha percepção aplica ao objeto(tangerina), mas não são o objeto em si. O objeto, para mim, passa a constituir-se a partir dos atributos que eu lhe aplico, a partir do momento em que lhe nomeio – maneira efetiva de nos apropriarmos do mundo natural, dando a ele nossos sentidos.
A realidade do objeto é um todo permanente; na percepção do instante, as coisas só se dão de maneira total, a fragmentação é um dos atos do conhecer; fragmentamos tanto no tempo como no espaço, para melhor adequarmos os objetos, o mundo, à realidade do que somos, à nossa sensoraliedade, às nossas percepções: o mundo é incompleto porque nós o percebemos assim, porque nós somos seres incompletos.
Numa auto-percepção, só nos enxergamos fragmentariamente, porque estamos percebendo a nós mesmos, nos dividimos entre sujeito e objeto, o que impede a apreensão de si como um todo: talvez por isso nos busquemos a todo instante, procuremos de si mesmo uma totalidade nunca alcançada: impossibilidade do próprio ato de conhecer.
Mas o objeto está ali: dotamo-lo de sentidos, mas ele tem seus próprios sentidos – como diria Merleau-Ponty, A natureza é a auto-produção de um sentido.
Com sentidos próprios ou atribuídos, a tangerina é um objeto perfeito, acabado; dotado de simetria e regularidade; os gregos diriam que ele é um objeto ordenado, que ele é e está num cosmos. A filosofia hermética, seguindo o preceito da Tábua de Esmeraldas, diria não só que ele é um cosmos, mas que ele espelha, reflete, o cosmos maior – Tal como é em cima é em baixo.
Intellecta ad rem ou Intellecta post rem, o fato inegável é que enxergamos correspondências e simetrias em diferentes unidades do universo; mas enxergo isso como maneiras de nos apropriarmos do mundo, não o mundo em si. Não há coisa-em-si no mundo, o fenômeno, a aparência, já são as coisas-em-si manifestas: se não percebemos sua totalidade é porque somos parte dela, e quando a fragmentamos, para melhor percebê-la e compreendê-la, deixamos de percebê-la como ela é.
O mundo é linguagem, mas não somente; se não houvesse palavras, o mundo continuaria a existir. Só percebemos o mundo à medida que percebemos nossa própria existência. Os outros seres que habitam o mundo – pois somos somente uma minúscula parte do mundo -, vivem suas existências em suas singularidades – há bilhões de criaturas que não se percebem nem como espécies, quanto mais como indivíduos; há outras que se percebem como espécies, outras que se percebem como grupos, e talvez uma minoria possa se perceber como unidade, mas só o homem – pelo menos no planeta terra – tem a consciência de si.
Os sentidos estão nas coisas; o mundo é muito belo. Cada fragmento que percebemos é um mundo próprio – o infinito está em todos os lados – acima, abaixo, fora e dentro de nós. Não há limites nas coisas. O limite está em nós.
Seja no tempo ou no espaço, as coisas estendem-se de modo total; a organicidade (ou inorganicidade) do mundo garante a sua totalidade e, de alguma maneira, sua coesão: se fragmento a tangerina até seus limites mínimos, atômicos ou sub-atômicos, esses elementos também poderão ser fragmentados infinitamente. O todo está presente o tempo todo, mas só a fragmentação nos permite conhecer.
Só o pensamento analógico, poético, nos permite superar as barreiras inerentes aos signos, como permite também um pensamento que não haja separação entre sujeito e objeto, onde os sentidos estejam misturados, onde possamos construir signos e sentidos pelo todo.
Decompomos o mundo ao máximo e ele não nos apresenta mais fronteiras, não há limites, nem no grande nem no pequeno – o limite está no ato de conhecer, não nos objetos.
O inconsciente também nos mostra que não há limites dentro do homem e, mais que isso, mostra que é possível organizar o conhecimento de outras maneiras; porque nos sonhos somos capazes de perceber de modo simultâneo, tanto espacial quanto temporalmente, sem que por isso percamos nossa lógica ? Porque em sonhos somos capazes de pensar de maneira total, sendo ao mesmo tempo sujeito e objeto ? Porque essa é uma possibilidade permanente – somente uma rígida estrutura consciente, mobilizada para uma vida de vigília, sempre a postos para as obrigações sociais, é que sufoca as possibilidades dessa outra racionalidade – analógica, total -, que trazemos em nós.

II
A formação de uma imagem do mundo se dá ao modo de uma constituição regressiva: através dos tantos fragmentos que cada área do conhecimento oferece parece que remontamos a uma imagem do mundo.
Essa imagem a refazemos a cada dia, ainda que não percebamos, pois o mundo se desenha para nós de maneira mecânica – não percebemos mais como se dá a formação do mundo em nós, quais os mecanismos com os quais criamos a representação do mundo que trazemos em nós.
Também somos cosmos, mas não nos percebemos enquanto tais, só nos percebemos como fragmentos.
Mas essa maneira de se apropriar do real questionando-o, o próprio ato filosófico, não é somente uma questão de mera intelecção: o conhecimento é uma forma de afeto, acho que foi Nietzsche quem disse isso, não sem razão. Concordo com Heidegger quando ele diz que o início do ato filosófico é o espanto: é essa surpresa diante das coisas mesmas, existentes; é a surpresa diante dos gestos, é a surpresa diante das simetrias que criamos e percebemos no existente: beleza, harmonia, ordem: kosmos.
A perfeição com que as coisas se encerram, se completam em si mesmas, com a qual a filosofia se espanta e a poesia se angustia e tenta recriar, não é a perfeição entendida como um ato acabado, mas como totalidade percebida.
Pensamento analógico: do cosmos da tangerina ao útero do figo: ao cortar um figo em duas metades, não pude deixar de reparar na sua forma interior, sua quase concavidade, matizada por tons de rosa e salmão, salpicado de sementes, lembrando o órgão genital feminino, um pequeno útero.
Grata surpresa: ver nas frutas o fruto da reflexão, o espanto filosófico – harmonia das tensões contrárias: o interior/exterior do homem germinando em contato com o mundo. Kosmos.

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Gledson Sousa