Para Ler a Crítica Musical de Bernard Shaw (i)

O grande dramaturgo irlandês George Bernard Shaw (1856-1959), foi também, além de um dos maiores vultos da literatura de língua inglesa e importante ideólogo socialista, o melhor crítico musical de sua época, ao cobrir, numa prosa única, de olhar penetrante e acento espirituoso, a cena musical do contexto vitoriano.

O gênero de discurso comumente designado por crítica musical, tal como praticado em colunas publicadas periodicamente em meios impressos ou virtuais, é, muitas vezes e salvo brilhantes exceções, um campo problemático da atividade jornalística. Reconhecido pelos próprios críticos como um dilema (PINCUS, 2002) ou mesmo por sua futilidade (COOKE, 1972), a crítica musical constitui-se, assim, predominantemente, por posições valorativas publicamente assumidas sem que se leve necessariamente em conta toda a complexidade dos fatos musicais em seus contextos de inserção. Este quadro decorre, em grande parte, de interações históricas entre instâncias econômicas tais como mídia, mundo de espetáculos e indústria fonográfica que se situam, todavia, fora do âmbito deste trabalho.

 

Tais instâncias reduzidas de crítica, materializadas como mero exercício valorativo de obras (composições) e/ou execuções (performances) musicais, se realizam quase sempre em nome do atendimento a expectativas presumíveis de categorias de ouvintes familiarizados à audição de gêneros musicais específicos, supostamente adquiridas mediante audições anteriores, tendo por finalidade, presumivelmente, orientar novas preferências de audição bem como, por outro lado, provocar reações de concordância ou oposição a posições críticas assumidas pelo autor acerca de algo que já pertença ao repertório auditivo do leitor. Junte-se, no entanto, ao propósito acima, tacitamente acordado entre críticos e seus leitores, um outro, configurado como uma relação particular e escusa existene entre a indústria fonográfica e amplos segmentos da mídia comercial, popularmente conhecido como o expediente do jabá e pertencente ao já aludido complexo campo interativo entre cultura, mídia, indústria e espetáculo exterior, como dissemos, ao escopo deste estudo. Para uma visão comprensiva do fenômeno na atual cena midiática brasileira contemporânea, sugerimo a leitura de textos dedicados ao tema por Márcia Tosta Dias, Maria Luiza Kfouri e Sérgio Rubens de Araújo Torres.

 

Sob estas premissas, nosso problema pode ser então formulado como

 

sob que condições se dá o exercício de uma crítica musical inteligente e educativa, que coloque mais questões do que, propriamente, respostas, a serviço da ampliação da consciência crítica de seus leitores ou, simplesmente, que os faça pensar ?

Conquanto respostas satisfatórias a questão acima formulada encontrem-se em abundância em textos críticos atuais como, por exemplo, aqueles de Norman Lebrecht, deteremos aqui o olhar sobre a brilhante e singular coluna periódica na qual George Bernard Shaw (1856-1950) cobriu assiduamente, inicialmente para o vespertino The Star e, posteriormente, para o semanário The World, a cena musical londrina e, parcialmente, européia entre 1888 e 1893. Deste foco particular de interesse derivamos, ainda, outra questão norteadora , de ordem mais restrita do que a primeira, que pode ser formulada como

 

que razões levariam músicos, professores, estudantes e ouvintes de música a se interessar por uma coleção de registros críticos de fatos e contextos musicais transcorridos há mais de cem anos ?

Ocupamo-nos aqui, assim, em síntese, do campo de interferência entre os dois eixos indagatórios acima formulados no âmbito da crítica musical em geral e da relevância para contextos atuais de seu exercício por George Bernard Shaw ao final da era vitoriana.

 

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Para que bem se dimensione o gênio criativo e a estatura humanística de Shaw deve-se, antes, situá-lo em perspectiva segundo as idéias de seu tempo. Por vezes descrito como um herói de muitas bandeiras, se dedicou apaixonadamente, ao longo de sua prolífica vida literária, à defesa e promoção de diversas causas, tais como o socialismo, o feminismo, o vegetarianismo e até mesmo a inovadora técnica então recentemente desenvolvida por Mathias Alexander para o aperfeiçoamento de atores, a qual viria, posteriormente, a contribuir significativamente para a qualificação da performance humana nos mais diversos campos de atividade. Ao mesmo tempo, opôs-se veementemente à mutilação e ao sacrifício de animais cometidos à época por Pavlov e outros em nome da experimentação biológica e farmacêutica.

 

A certa altura, chegou a defender a adoção de um novo alfabeto para a língua inglesa, destinando um fundo para a realização de um concurso com esta finalidade, o qual resultou na criação por seu vencedor Ronald Kingsley Read, por volta de 1960, do alfabeto shaviano, hoje não mais do que mera curiosidade, a qual bem ilustra, outrossim,

a radical originalidade de algumas de suas concepções.

 

Shaw foi também laureado com o Prêmio Nobel de Literatura em 1925 e com o Oscar em 1938 pela adaptação de sua comédia Satiricon para o cinema, posteriormente também levada à Broadway como o musical My Fair Lady.

 

Shaw deplorava um gênero de romance sentimental apresentado por seus contemporâneos às audiências inglesas. Ao confrontar, pela primeira vez, aquele público com questões de importância social ou política, fez do palco um espaço privilegiado para a comunicação de idéias (JOHNSTON). Seu tom franca e eminentemente visionário e renovador constituiu-se, com efeito, num dos mais marcantes traços estilísticos de sua dramaturgia. Esta mesma índole também se faz presente em seus textos críticos musicais, em muitos dos quais prefere, ao invés de chorar sobre o leite derramado, endereçar positivamente aos sujeitos de suas crônicas recomendações e subsídios, de acento jocosamente aforístico, no elevado interesse de um melhor porvir musical.

 

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A notável acuidade auditiva e a apurada sensibilidade estética de Shaw, equiparáveis ou superiores às de muitos músicos, foram adquiridas em decorrência das excepcionais circunstâncias em que se deu sua formação a partir de sua renúncia voluntária, desde muito cedo, a toda e qualquer educação escolar. Em seu prefácio de 1935 a uma edição de suas primeiras crônicas musicais, publicadas originalmente em 1888 e 1889 sob o cômico pseudônimo de Corno di Bassetto, afirma solenemente haver aprendido, durante sua infrutífera incursão escolar, tão somente a operação de divisão, a saber, a única que não lograra anteriormente lhe haver ensinado uma governanta. Depois disto, os únicos ensinamentos dos quais se recorda foram lições de gramática latina recebidas de um tio. O relato do próprio Shaw acerca de das especiais circunstâncias que favoreceram ou determinaram sua auto-educação constitui-se como interessante subsídio para o entendimento da dispensabilidade da educação escolar para alguns sujeitos sob certos contextos (que, todavia, não examinaremos neste trabalho), razão pela qual o citamos, abaixo, extensivamente.

“I can remember no time at which a page of print was not intelligible to me, and can only suppose that I was born literate. […] She (the governess) taught me to add, subtract, and multiply, but could not teach me division, because she kept saying two into four, three into six, and so forth without ever explaining what the word “into” meant in this connection. This was explained to me on my first day at school; and I solemnly declare that it was the only thing I ever learnt at school. […] The only other teaching I had was from my clerical Uncle William George (surnamed Carroll) who, being married to one of my many maternal aunts (my father had no end of brothers and sisters), had two boys of his own to educate, and took me on with them for awhile in the early mornings to such purpose that when his lessons were ended by my being sent to school, I knew more Latin grammar than any other boy in the First Latin Junior, to which I was relegated. After a few years in that establishment I had forgotten most of it, and, as aforesaid, learnt nothing; […] I was fat too busy educating myself out of school by reading every book I could lay hands on, […] At the end of my schooling I knew nothing of what the school professed to teach; but I was a highly educated boy all the same. I could sing and whistle from end to end leading works by Handel, Haydn, Mozart, Beethoven, Rossini, Bellini, Donizetti and Verdi. I was saturated with English literature, from Shakespeare and Bunyan to Byron and Dickens.” (SHAW, 1935, pp. 13-15)

No mesmo texto, também recorda as lições de gramática latina recebidas de um tio, além da privilegiada instrução vocal e musical obtida através da mãe e do tutor informal com quem a família Shaw dividiu por algum tempo o domicílio em Dublin. Imerso, assim, numa virtuosa atmosfera musical doméstica, Shaw adquiriu desde cedo um amplo domínio sobre as principais obras do repertório vocal. Somente mais tarde, ao se mudar para Londres, foi que Shaw, alegadamente para suportar o silêncio resultante da dissolução de seu domicílio, instruiu a si próprio ao piano ao ponto de adquirir habilidade suficiente para executar arranjos de música orquestral, o que lhe franqueou, por sua vez, o acesso a territórios antes desconhecidos, além da ópera e do oratório, tais como sinfonias, aberturas e música de câmara. Aqui, face à relevância deste documento não apenas em relação à já mencionada experiência singular da auto-educação de Shaw mas, principalmente, para a pedagogia musical em si, particularmente no tocante à aquisição de habilidades ao piano como instrumento secundário, cabe, mais uva vez, citá-lo extensamente.

“… having lived since my childhood in a house full of music, I suddenly found myself in a house where there was no music, and could be none unless I made it myself. […] having purchased one of Weale’s Handbooks wich contained a diagram of the keyboard and an explanation of music notation, I began my self-tuition, not with Czerny’s five-finger exercises, but with the overture to Don Giovanni, thinking rightly that I had better start with something I knew well enough to hear weather my fingers were on the right notes or not. There were plenty of vocal scores of operas and oratorios in our lodging; and although I never acquired any technical skills as a pianist, and cannot to this day play a scale with any certainty of not foozling it, I acquired what I wanted: the power to take a vocal score and learn its contents as if I had heard it rehearsed by my mother and her colleagues. I could manage arrangements of orchestral music much better than piano music proper. At last I could play the old rum-tum accompaniments of those days well enough (knowing how they should be played) to be more agreeable to singers than many really competent pianists. I bought more scores, among them one of Lohengrin, through which I made the revolutionary discovery of Waggner. I bought arrangements of Beethoven’s symphonies, and discovered the musical regions that lie outside opera and oratorio.” (idem, pp. 26-27)

Ainda como parte de seu projeto educativo particular, Shaw fez da Dublin National Gallery, “um dos melhores museus de seu porte do mundo” (ibid., p. 16), sua própria escola, onde, além de aprender a reconhecer à primeira vista as obras dos antigos mestres, saturou-se de literatura inglesa, de Shakespeare e Bunyan a Byron e Dickens, e aprendeu história francesa com Dumas père e inglesa com Shakespeare até Walter Scott (ibid., p. 16).

 

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Antes que suas primeiras novelas fossem dadas ao conhecimento público, como folhetins, por força e obra de amigos, Shaw valeu-se de sua imensa bagagem artístico-humanística para escrever e publicar, assiduamente, crítica literária, dramática, musical e de artes visuais. As circunstâncias, tão bizarras quanto cômicas, sob as quais se viu, repentinamente e pela primeira vez , incumbido de assinar uma coluna de crítica musical são assim recordadas pelo próprio Shaw:

“In 1888, I being then 32 and already a noted critic and political agitator, the Star newspaper was founded under the editorship of the late T. P. O’Connor (nicknamed Tay Pay by Yates), who had for his very much more competent assistant the late H. W. Massingham. […] Massingham induced him to invite me to join the political staff of his paper; but as I had already, fourteen years before Lenin, read Karl Marx, and was preaching Socialism at every street corner or other available forum in London and the provinces, the effect of my articles on Tay Pay may be imagined. He refused to print them, and told me that, man alive, it would be five hundred years before such stuff would come practical political journalism. He was too good natured to sack me; and I did not want to throw away my job; so I got him out of his difficulty by asking him to let me have two columns a week for a feuilleton on music. He was glad to get rid of my politics on these terms; but he stipulated that – musical criticism being known to him only as unreadable and unintelligible jargon – I should, for God’s sake, not write about Bach in B minor. I was quite alive to that danger: in fact I had made my proposal because I believed I could make musical criticism readable even by the deaf.” (ibid., p. 5)

Foi desta forma que o ainda então desconhecido dramaturgo passou a cobrir, semanal e ininterruptamente, de 1888 a 1889 para The Star e de 1889 a 1893 para The World, não somente as cenas musicais inglesas metropolitana e privinciana em toda sua diversidade, como também fatos musicais relevantes da Europa continental tais como, por exemplo, concertos em Paris e, Amsterdam ou ainda encenações de óperas de Wagner em Bayereuth, inicialmente sob o cômico pseudônimo Corno di Bassetto, cuja origem é assim esclarecida pelo próprio Shaw:

“I was strong on the need for signed criticism written in the first person instead of the journalistic “we”; but as I then had no name worth signing, and G. B. S. meant nothing to the public, I had to invent a fantastic personality with something like a foreign title. I thought of count di Luna (a character in Verdi’s Trovatore), but finally changed it to Corno di Bassetto, as it sounded like a foreign title, and nobody knew what a corno di bassetto was.” (ibid., p. 6)

O longo período, de 14 de maio de 1888 a 16 de maio de 1890, em que Shaw ostentou incógnito seu cômico disfarce caracterizou-se por um intenso acento irônico sobre a ignorância de seus contemporâneos acerca de matérias musicais além de sua realidade imediata, como bem se depreende das seguintes linhas:

“As a matter of fact the corno di bassetto is not a foreigner with a title but a musical instrument called in English the basset horn. It is a wretched instrument, now completely snuffed out for general use by the bass clarinonet. It would be forgotten and unplayed if it were not that Mozart has scored for it in his Requiem, evidently because its peculiar watery melancholy, and the total absence of any richness or passion in its tone, is just the thing for a funeral. Mendelssohn wrote some chamber music for it, presumably to oblige somebody who played it; and it is kept alive by these works and by our Mr. Whall. If I had ever heard a note of it in 1888 I should not have selected it for a character which I intended to be sparkling. The devil himself could not make a basset horn sparkle.” (ibid., p. 6)

A relevância de sua crítica musical para além de seu contexto original se deve, inicialmente, a nela serem pela primeira vez reconhecidos, já por seus primeiros comentaristas (IRVINE, 1946), traços estilísticos que viriam mais tarde a se consagrar como marcantes de sua notável dramaturgia. Com efeito, muito do frescor preservado nestas crônicas de episódios e personagens de uma cena musical de outro modo fadada ao esquecimento se deve à maestria com que Shaw, dramatizando-a, lhe confere imortalidade. Note-se, também, que o interesse musical que impregnou a infância e a obra do jovem crítico permanece como função central e recorrente ao longo de sua célebre dramaturgia. Fossem, todavia, apenas estas as virtudes destas crônicas, bastariam as mesmas para trazer-lhes, quando muito, a atenção de não mais do que aficionados e estudiosos literários.

 

Em G. B. Shaw’s Musical Criticism (1946), William Irvine apropriadamente sublinha a audição apurada, o tom satírico e o ímpeto reformador do jovem Shaw. A estes atributos, que examinaremos individualmente adiante, agregamos outro, não menos importante, a saber, sua sensibilidade privilegiada, única entre seus contemporâneos, ao esteticamente novo.

 

Frequentemente ocorre que inovações estéticas importantes somente sejam reconhecidas e assimiladas decorrido um certo tempo desde sua emergência. Tal é a idéia mestra por trás do célebre artigo de Charles Rosen Should music be played ‘wrong’ ? (ROSEN, 1971), bem como da anedota segundo a qual Brahms, ao ouvir um amigo violoncelista, que o obsequiava com uma execução experimental de sua inovadora segunda sonata para violoncelo e piano, observar, acerca de sua estranheza em relação à vertiginosa modulação de seus primeiros compassos, que “não teria entendido nada”, imediatamente replicara “sorte sua” – sem dúvida em alusão à provável precariedade da execução sob aquelas circunstâncias, i.e., de uma música inaudita em estilo dramaticamente estranho à sua época.

 

Oportunamente, retornaremos ao tema da estranheza de Brahms para seus contemporâneos refletida na crítica e auto-crítica de Shaw. Por ora, destacamos que, até o final da era vitoriana, fatores como a inexistência de meios de gravação e reprodução sonora e, não menos importante, a própria condição insular da Grã-Bretanha contribuíram decisivamente para o agravamento do atraso na difusão para audiências inglesas da nova música composta na Europa continental. Inconformado com este cenário, o recém investido crítico musical tomou a reversão desta situação como uma de suas principais bandeiras. Emblemáticos deste espírito são, por exemplo, o fato de ter trazido ao conhecimento do público inglês o novo teatro realista de seu contemporâneo norueguês Enrik Ibsen (1828-0906); as inovações musicais de seu contemporâneo alemão Richard Wagner (1813-1883) e mesmo a música relativamente desconhecida, conquanto centenária, de Wolfgang Amadeus Mozart (1756-1791). Ao mesmo tempo, empenhou-se em derrubar mitos do campo musical e elucidar circunstâncias mediante as quais era comum se conferir, por vezes, a realizações medíocres a própria condição de existência artística.

 

Imbuído, assim, de tamanho entusiasmo reformador, Shaw lançou um olhar eminentemente satírico sobre diversas categorias da experiência musical, temperando cada página, linha ou palavra com um sofisticado humor a serviço tanto do enaltecimento do sublime (ainda que raramente) como da erradicação de más práticas (mais frequentemente) no âmbito da ópera, composição, regência e execução orquestrais, práticas vocais e instrumetais, dicção, interpretação cênica, audição e educação musicais.

 

De todas as categorias acima, foi à má interpretação vocal que Shaw mais freqüentemente dirigiu sua notável verve satírica, daí resultando o timbre alegremente dramático de suas crônicas dedicadas à execução vocal, que se constituem, assim, como hilárias comédias metalingüísticas acerca do singularíssimo mundo da ópera. O humor essencial destas crônicas muito se deve, por sua vez, ao já mencionado tom aforístico com que Shaw positivamente aconselha os responsáveis por más práticas testemunhadas. Arcibravo, GBS !, (SCHMIDGALL, 1998) é uma farta compilação de referências cômicas a cantores, organizadas por registro vocal (!), bem como de instâncias de males crônicos do mundo da ópera, na qual o autor sublinha, onde se aplica, a persistência em contextos atuais das más práticas denunciadas por Shaw há mais de cem anos atrás (!).

 

É, todavia, ao debruçar-se sobre a organização da vida musical em todas as suas esferas que Shaw encontra o terreno mais fértil para sua crítica mais francamente reformadora e socialmente ambiciosa, orientada para um futuro musical melhor e não muito distante. É, com efeito, em prol de avanços significativos nestas frentes que Shaw mergulha, munido de um notável – ao menos para um crítico de então – equipamento teórico sócio-econômico, em discussões acerca

 

Face ao tom franco e pretensioso de suas crônicas, não tardou em ter sua autoridade em matérias musicais questionada por leitores – ou, ao menos, assim deu a entender, posto que, a bem da verdade, o próprio Shaw, dada sua refinadíssima verve satírica, pode bem ter levantado ele mesmo objeções à própria crítica, imputando-as a interlocutores e missivistas fictícios não mais do que pelo prazer retórico de poder responder-lhes, atualizando, com isto, a antiga forma do diálogo folosófico-pedagógico. De qualquer maneira, seja qual for a verdade, fato é que suas respostas a tais objeções assumiam sempre, nestes casos, formas que variavam, ao sabor de seu humor, de uma prolixidade didática à desdenhosa indiferença.

Transcorridos já mais de cem anos desde que tais más práticas foram brilhantemente reveladas por Shaw, permanecem as mesmas, todavia, ainda hoje largamente disseminadas em certos contextos – sendo que pouco parecem ter contribuído, nestes casos, para um real progresso artístico as radicais e aceleradas transformações sócio-econômicas e inovações tecnológicas verificadas desde então. Estamos aqui a nos referir a uma expectativa superestimada, porquanto não consumada, de evolução de padrões estéticos e na educação do público ouvinte de música em razão da crescente disponibilidade de novos e poderosos recursos para replicação e circulação de gravações de som e imagem tais como o rádio, o cinema, a televisão, as tecnologias digitais e, mais recentemente, a internet com seus novos estatutos de fluxo informacional. Dito de outro modo, parece que o efeito da acessibilidade global sobre as expectativas públicas de qualidade artística ficou um pouco aquém do que seria de se esperar face aos novos meios. A análise deste fenômeno não pode, todavia, ser empreendida sem que sejam considerados fatores econômicos que desde o início insistimos, em vão, em manter fora de nosso foco de interesse. Deixemos, pois, ao próprio Shaw inaugurar, alguns parágrafos adiante, a discussão acerca dos mesmo no âmbito deste ensaio.

Por hora, salientamos que nosso interesse pelas idéias e posições defendidas na crítica musical de Shaw se deve, primordialmente, a sua permanência e relevância para contextos educativos e artístico-culturais atuais – sua atualidade atemporal decorrendo, por sua vez, de sua universalidade. Ora, ao não deter o olhar sobre pormenores e fenômenos particulares mais do que o suficiente para lhes fazer referência, Shaw busca invariavelmente em sua crítica, antes, a contextualização dos fenômenos efêmeros e locais que lhe servem de ensejo em relação a campos referenciais mais amplos.

De igual importância para nosso enfoque sobre a literatura musical de Shaw é sua inclinação cômico-satírica. Assim, mesmo que seja pouco provável que a música possa induzir, de algum modo independente de palavras, ao riso, é notório, por outro lado, que a mesma pode ser revelada metalinguisticamente através de obras literárias de linguagem primordialmente cômica, como bem evidencia Shaw em sua prosa satírica musical. É, com efeito, largamente improvável encontrarmos, na antologia completa de suas crônicas, qualquer passagem que não esteja profundamente impregnada de algum matiz sorridente.

O elemento cômico que preside toda literatura crítica musical de Shaw pressupõe seu absoluto comando sobre o humor em todas as suas formas e nuances. Em certa passagem do prefácio de 1935 para suas crônicas, o autor também oferece ao leitor evidência de sua aquisição precoce deste domínio, ao referir-se ironicamente a um episódio ao qual atribui seu primeiro entendimento do humor derrisório.

“As to early education I can remember our daily governess, Miss Hill, a needy lady who weemed to me much older than she can really have been. She puzzled me with heítr attempts to teach me to read; for I can remember no time at which a page of print was not intelligible to me, and can only suppose that I was born literate. She tried to give me and my two sisters a taste for poetry by reciting “Stop; for thy tread is on an empire’s dust” at us, and only succeeded, poor lady, in awakening our sense of derisive humor.” (ibid., pp. 13-14)

É, assim, numa atmosfera de cultivado desinteresse pelos personagens que circunstancialmente habitam sua coluna, muitos deles fadados ao esquecimento, conjugada ao obstinado propósito de contribuir para a emergência de um melhor porvir musical que Shaw compõe sua prosa alegre e reverente, na qual não poupa invectivas e exortações a quem quer que não lhe poupe aos ouvidos experiências musicais aquém de suas grandes expectativas.

 

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As referências citadas na primeira parte deste ensaio encontram-se ao final de sua segunda parte.

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Augusto Maurer