Pensar-sentir-dizer

Todo mundo nessa vida já recorreu a algum livro ou a alguma música para tentar explicar, desdobrar, esmiuçar um sentimento. O amor, coitado, é o mais batido deles. Dos poeminhas infantis decepcionados com os abandonos ainda incompreensíveis (“o amor é uma flor roxa que nasce no coração dos trouxas”), aos versos melosos que juram amor eterno “eu sei que vou te amar, por toda minha vida eu vou te amar”. Eles nunca nos bastam. Compramos presentes, fazemos surpresas, gestualizamos, para que seja entendido o tamanho do amor, a quantidade do amor. Mas como ele é excessivo, ele excede a própria linguagem. E ali onde tentamos capturá-lo para torná-lo compreensível está seu efeito encantador de nunca poder dizê-lo. O amor tem, portanto, algo de secreto. Ás vezes uma dobrinha da coxa, ou a covinha na bochecha que só se forma com um determinado sorriso. E como dizer esse secreto incompreensível e adorado? Walter Benjamin tentou assim:

Quem ama não se apega apenas aos erros da amada, não apenas aos caprichos e as fraquezas de uma mulher, rugas no rosto, sardas, vestidos surrados e um andar desajeitado o prendem de maneira mais durável e inexorável do que qualquer beleza (…) E por quê? Se é correta a teoria segundo a qual os sentimentos não estão localizados na cabeça, que sentimos uma janela, uma nuvem, uma árvore não no cérebro, mas antes, naquele lugar, onde vemos – estamos também nós, ao contemplarmos a mulher amada fora de nós mesmos (…) Ofuscado pelo esplendor da mulher, o sentimento voa como um bando de pássaros. E assim como os pássaros procuram abrigos nos esconderijos frondosos da árvore também se recolhem os sentimentos, seguros em seus esconderijos, nas rugas, nos movimentos desajeitados e nas máculas singelas do corpo amado. Ninguém ao passar, adivinharia que, justamente ali, naquilo que é defeituoso, censurável, aninham-se os dardos velozes da adoração. 

Ama-se de corpo inteiro, mas esse corpo inteiro nunca é acessível porque é justamente no inapreensível do ser que está o amor. O amor nunca é completude e plenitude, a “sorte do amor tranqüilo” nunca chega. Ele não preenche, ao contrário, é a forma mais intensa de descobrir o vazio que nos estrutura. Amar não assegura nada, amando perde-se toda a consistência. Longe de toda posse e de qualquer idéia de fusão, o amor pode ser compreendido na soma e nunca na subtração ou na supressão das singularidades. Amar é projetar-se ao mundo, e não no outro. A tentativa de identificação máxima para justificar um encontro, que é sempre inesperado, é o que pode fazer desse amor uma burocracia tediosa. Quando se diz “somos um só”, anula-se toda a diferença que sustenta o amor. Porque o amor precisa de pelo menos 4 pernas como base de sustentação. Porque amar é compartilhar, é partilhar com o outro, é estar-junto, lado-a-lado. Íntimo, porém estranho como diz Agamben:
 
Viver na intimidade de um ser estranho, não para nos aproximarmos dele, para dar a conhecer, mas para o manter estranho, distante, e mesmo inaparente – tão inaparente que seu nome possa conter inteiro. E depois, mesmo no meio do mal-estar, dia após dia não ser mais que o lugar sempre aberto, a luz inesgotável na qual esse ser único, essa coisa, permanece para sempre exposta e murada. 
 
Daí que a tão repetida canção da bossa nova faça sentido: “é impossível ser feliz sozinho”. Só é possível construir o eu com o outro. Toda subjetividade nasce e renasce na imagem que projetamos ao mundo e nas que recebemos do mundo. É pessoal e intransferível, está no outro apenas na forma complementar e parcial. Não existe totalidade que possa ser apreendida no amor. O amor se localiza no não-lugar do outro. É um não-lugar que pulsa e movimenta o desejo que permanece aberto e incompleto. É uma incômoda situação de vulnerabilidade, um estado de suspensão. Não por acaso dizemos, quando apaixonados, que "caminhamos nas nuvens", é uma forma de dizer a atopia de Barthes. 
 
O amor é inabarcável na linguagem porque ele só se realiza no ato e no corpo. Por isso tanto Barthes quanto Agamben dirão que Eu te amo é performático, ou seja, sua significação coincide com o ato de dizer. Mas isso não significa que o amor seja a sensação sublime da felicidade: viver na borda de um abismo é vertiginoso. Para amar é preciso a capacidade de suportar esse afeto. Um afeto que leva a loucura: ama-se loucamente, quer-se loucamente. Nesse sentido, amar é também padecer. Apaixonar-se é deixar o corpo aberto e sem a imunidade que tenta precaver a contaminação mundana. É abrir-se a certa passividade e patologia próprias da paixão. Amar é a capacidade de ser patético.
 
O amor requer de nós uma ação criadora. Talvez seja por isso a insistência ansiosa que temos dizê-lo e recriá-lo: os livros, as músicas, a psicanálise, a auto-ajuda (embora seja impossível se auto-ajudar porque o sujeito não se basta a si mesmo) etc. Mas a linguagem é sempre insuficiente para explicar alguma coisa que se realiza mais no corpo que na civilidade da língua. Amar é pensar-sentir-dizer simultânea e intempestivamente. É a saída pela singularidade, porque no amor se compreende o ser tal qual ele é: irreparável, inclassificável, inqualificável. Não por acaso se aposta tanto nele como política para criar outro mundo possível. Da filosofia à religião. Só que o amor nada tem a ver com a lei cristã: “amai ao próximo como a ti mesmo”. Amar é uma decisão a ser tomada. Amar é desejar compartilhar um mundo. 

 
 
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Flávia Cera