vértebra segunda: a desordem


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 “a sexualidade é algo que nós mesmas criamos – ela é nossa própria criação, ou melhor, ela não é a descoberta de um aspecto secreto de nosso desejo. nós devemos compreender que, com nossos desejos, através deles, se instauram novas formas de relações, novas formas de amor e novas formas de criação. o sexo não é uma fatalidade; ele é uma possibilidade de aceder a uma vida criativa.”

(michel foucault)

 
… chega a segunda vértebra em movimentos descontínuos. aprendeu com a primeira que o óbvio opõe-se ao erotismo e decidiu romper caminhos de sucessividades patentes e trilhas de um mapeamento metódico. não se trata, portanto, do osso imediatamente a seguir da primeira vértebra, abaixo ou acima, em movimentos que descem, sem desvios, do primeiro osso da cervical ao último do cócix ou do primeiro osso do cócix ao último da cervical. poderia ser o osso imediatamente a seguir, mas a segunda vértebra decidiu se rebelar contra os ordenamentos das colunas, das espinhas e dos espinhos e, num ato afoito e resoluto, afirmou-se como a vértebra do descaminho, do descompasso, da desmedida dos desejos e dos afetos. assim, os dedos que saíram da primeira vértebra inverteram lógicas de retidão e decidiram chegar à segunda por desvios no esperado e por rotas certeiras, mas sinuosas, ao inesperado. uniram-se a línguas, lábios, cílios, palmas das mãos, unhas e pelos e, umidificado por fluidos, mucos, sêmen, salivas e suores, decidiram passear sem mapas e sem pressa nas nervuras singulares dos corpos, de suas fendas e dos seus encontros. não poderia ser diferente, já que a segunda vértebra é justamente a desordem.
 
desaba em mim suas ordenações, paus, picas, pilares, sustentações, que o erotismo é a arte do desamparo. não há erotismo quando os desejos são erigidos em ordenamentos alheios, sob colunas e vigas do tem-que-ser-assim. desaba em mim suas ordenações, rasga mapas e deixa o corpo mole permitindo alastrar gotas de suor e descompasso, que o erotismo é a arte do desalinho. não há erotismo no ordenamento, nos mandatos e nos desejos atropelados por trilhas impostas. a perda das potencialidades das artes eróticas em nossa cultura nos levou a um sexo marcado pela ordem. cheio de ditames, regras e disposição de práticas preditas, essa coisa que se configurou na modernidade como sexualidade aferra o erotismo ao organizar nossas práticas e relações corpóreo-afetivas em opressoras lógicas pré-arranjadas. imprazerosamente, normalmente o encontro de corpos não se abre como espaço da criação, mas de encenações de posições já previamente ditadas. há um mandato do sexo straight – o sexo reto, correto, na ordem – que nos interpela com a seguinte ordem: goze! mas goze dessa determinada maneira!
 
a própria idéia de sexo e de sexualidade já é alicerçada em noções muitas vezes bastante fixas. por exemplo, poderíamos começar com um esforço de estranhamento da idéia de “preliminares”. um colega, ao saber da minha estréia no portal ops com uma coluna sobre erotismo, sugeriu que eu falasse o mais rápido possível sobre elas. pediu que eu aventasse dicas de preliminares para garantir o “bom sexo”. a idéia de preliminares se refere ao que antecede um assunto ou um objeto principal, são como condições prévias de chegada a um lugar já determinado, são as práticas que – na fala desse conhecido – garantiriam o “bom sexo”. a idéia de preliminares traz a idéia que tudo o que vem antes desse objeto principal ou alvo almejado possui um status menor – não é o sexo de verdade, mas é a prévia dele ou a rota em sua direção. desse modo, nessa mentalidade, seria possível um sexo sem preliminares (o qual talvez não fosse bom, mas ainda sim sexo); mas não um sexo sem o alvo almejado, a saber, a penetração do pênis.
 
para uma grande maioria das pessoas, as relações sem penetração (ou, mais especificamente, sem a penetração do pênis, afinal muitas coisas se penetram nas artes eróticas) não são nem entendidas como sexualidade ou então julga-se que todos os atos eróticos que não incluam esta prática seriam apenas uma pré-sexualidade, uma brincadeira ou apenas jogos e táticas de sedução e de provocação de interesse e excitação. é essa noção que faz, por exemplo, que as relações eróticas entre mulheres, sejam muitas vezes entendidas por nossa sociedade homofóbica como uma relação “em que falta algo” (e sempre tem um macho babaca que vai encher o saco de um casal de mulheres para se oferecer para ser o ‘pedaço que falta’). por não ser centrada na penetração masculina, esse imaginário falocentrado (ou falordenado) afirma que as relações lesbianas não comporiam uma “sexualidade verdadeira”. 
 
esse ordenamento anti-erótico está conectado ao que discutimos na coluna anterior, a obviedade. em lógicas de trilhas já traçadas, as relações sexuais são bastantes parecidas, há um códice demasiado explicito de ordem de práticas, de jeitos de gozar e de demonstrar prazer – uma espécie de cartilha bastante explícita que dita como deve ser o desempenho. e por falar em desempenho, quão anti-erótica é essa noção de que práticas sexuais devem ser avaliadas em termos de desenvoltura na representação de um script já conhecido ou ainda como a atuação de uma máquina ou motor! quando falamos em desempenho parece que toda a leitura de práticas, ações, desejos manifestados, prazeres trocados se dá encima de um papel já definido, de uma maquinaria já ordenada.   
 
e se rasgarmos os scripts? e se boicotarmos nossa organização enquanto máquinas? e se cada rota nos esbarrões dos corpos for única? e se o poder não puder mais rastrear os desejos? e se não tivermos desempenhos, porque não se mede e nem se compara em cadeia de desenvoltura as singularidades desordenadas?
 
sem ordem, os corpos escapam. ficam repletos de partículas de desejos singulares que são como fina areia que não se permite aprisionar pela mão que tenta contê-la. ela escorre entre os dedos, lança-se ao vento e voa para longe, aparecendo onde nem mesmo era esperada. afinal, sem mapas, sempre é possível ir mais longe.
 
o pensador erótico indiado mallanaga vatsyayana, que viveu no ápice da dinastia grupta (sec. IV a VI a.c), escreveu no kamasutram, no iníco dos aforismos sobre o beijo talvez uma das belas frases da arte erótica e ela verseva justamente sobre o lugar da ordenações no erotismo. opondo-se a quem supõe uma ordem (mais ou menos rígida) de momentos para abraços, beijos, unhadas e pressões de dedos – concebendo que elas devem ocorrer como preliminares da penetração –, vatsyayana afirmou com a mais intensa frase do kamasutram que esses atos e qualquer outros podem acontecem em qualquer tempo, haja vista que “o amor não se verga ao tempo e à ordem”.
 
a vértebra segunda é a desordem.
 
 

 
a poesia de hoje é de safo de lesbos:
 
 
Ditosa que ao teu lado só por ti suspiro!
Quem goza o prazer de te escutar,
quem vê, às vezes, teu doce sorriso.
Nem os deuses felizes o podem igualar.
 
Sinto um fogo sutil correr de veia em veia
por minha carne, ó suave bem-querida,
e no transporte doce que a minha alma enleia
eu sinto asperamente a voz emudecida.
 
Uma nuvem confusa me enevoa o olhar.
Não ouço mais. Eu caio num langor supremo;
E pálida e perdida e febril e sem ar,
um frêmito me abala… eu quase morro … eu tremo.
 
(“A uma mulher amada”, Safo)

 
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(fe)lipe areda