Antitextos By fabricio kc / Share 0 Tweet Espiritualidade, como a entendo, é o mesmo que reflexão – atitude reflexiva profunda e, se quisermos, de amor reflexivo à vida. Não qualquer reflexão, claro, mas reflexões universais sobre o sentido da vida e os sentimentos profundos que tais reflexões engendram. Reflexões sobre indagações últimas que não têm respostas definitivas, por mais desesperadamente que nossas teorias, doutrinas e dogmas tentem fornecê-las. Nesse sentido, ateísmo e religião se confundem: a religião afirma, o ateísmo nega – ambos, no entanto, apoiando-se na fé e na crença, seja em tradições e valores ancestrais, seja nas ideias das filosofias científicas. Há questões que simplesmente não são da alçada do método científico (como imortalidade, por exemplo). Negá-las, para o ateu, é a primeira tentação, como o é respondê-las através da superstição e da tradição para o religioso. Quando os ateus não negam tais questões, mas negam tão somente as respostas fáceis religiosas para elas, acabam tornando-se dependentes da religião: a outra face da moeda, a negação. A postura mais comum dos ateus que conheço (pessoalmente ou através de suas obras) é a atitude anti-cristista – isto é, a negação da religião em sua manifestação ocidental da tradição judaico-cristã. A maioria deles desconhece os conceitos mais elementares de outras religiões (atuais ou não, hegemônicas ou não), recorrendo ao termo genérico ‘Religião’ mas utilizando somente argumentos referentes à cultura judaico-cristã. Isso limita muito o argumento dos ateus, que é ainda mais simplificado quando assume a forma exclusivamente negativa: negam a Religião (sic) apontando os crimes históricos da Igreja, as manipulações da superstição e dos costumes religiosos por parte de estruturas de poder e, também, criticando o comportamento do ser religioso, que revela-se, muitas vezes, intolerante, medíocre e baixo, sobretudo no que se refere a aspectos morais da cultura. Ora, acusar intolerâncias, baixezas, crimes e mediocridades nas religiões é uma maneira falsa de negá-la. Primeiro, porque todas essas crueldades não representam o discurso religioso como um todo, mas refletem interpretações e aplicações, por parte de grupos e/ou seitas, que muitas vezes deturpam e distorcem claramente os próprios fundamentos ancestrais da sua própria tradição religiosa. Segundo, a falácia se revela quando o argumento ateu quer fazer-nos pensar que tais crueldades manifestam-se exclusivamente na religião. Intolerâncias, baixezas e mediocridades aparecem em tantas outras dimensões humanas, sobretudo na Política (que por vezes também se apropria simbolicamente da religião). Acusa-se muito a Santa Inquisição, este crime histórico da Igreja Católica de Roma, para atacar a Religião como um todo. Mas o ateu cujo argumento se resume sobretudo ao anti-igrejismo, anti-catolicismo e anti-cristianismo, deveria, então, recorrendo à mesma lógica, atacar a Política como um todo, acusando-a de ser a dimensão humana responsável por inúmeras tiranias, pelo nazismo, pelo fascismo e pelo stalinismo. Seria o caso de abolir a Política? Não creio. Seria o caso de abolir a humanidade, acusando os crimes que cometemos ao longo da História? Não creio também. Desvencilhar-se de religiões e de filosofias totalizantes, estas filosofias reduzidas a “teorias do conhecimento: isso é filosofia em sua agonia e morte” (Nietzsche), é imperativo. Acreditar em dogmas religiosos ou em dogmas filosófico/científicos: ambas as atitudes têm mais coisas em comum do que parece a primeira vista. Declarar-se ateu materialista implica em declarar a crença em teorias acerca da matéria e, necessariamente, ignorar qualquer coisa que não caiba nas teorias vigentes sobre a matéria. Sim, teorias! Porque há cientistas – sim, cientistas – que afirmam ser a matéria o nosso maior mistério científico contemporâneo. Ou seja, tanto o ateu materialista quanto o crente religioso alicerçam toda a sua crença no Mistério. Enfrentar a condição humana é tarefa que traz em si exigências supremas. Claro que eu, enquanto ateu, não creio que as religiões – quaisquer delas – ofereçam um modelo adequado para alcançar as respostas àquelas indagações últimas lançadas por nosso inato apetite de saber. Na verdade, nem sei se o que devemos buscar são respostas… Enfim, reitero: espiritualidade é um processo. Nietzsche, cujo ateísmo e ácidas críticas à religião dominam tanto sua filosofia quanto sua reputação, rejeitou e censurou a religião sob muitas de suas formas – em particular suas manifestações mais sectárias e hipócritas –, mas nunca rejeitou a espiritualidade. Nisso, não obstante as enfáticas contradições, Nietzsche traz profundas afinidades com Hegel, com Sartre e outros filósofos. O que se propôs nas obras desses filósofos foi naturalizar a espiritualidade, revalorizar ou reencantar a vida cotidiana, livre de religiões e pensamentos fechados. Recombinar espiritualidade com ciência e natureza em vez de jogá-las uma contra a outra. Espiritualidade, como disse, é para mim atitude reflexiva perante a vida. Espiritualidade não é meramente religião organizada, nem tampouco é anti-ciência. Ateus, uní-vos não contra as religiões somente, mas sim contra tudo que se apega a dogmas e a convicções de qualquer natureza. Deixar-se limitar , enquanto ser racional, por dogmas e convicções é quase que matar-se. Aliás, a luta nem é contra algo, mas é uma busca íntima com amplo sentido do Comum. Nós, ateus, precisamos amadurecer nossas posições críticas, nossos argumentos – limitar-se a falar mal da Religião, apontar seus erros, além de fácil, é falso. Sobretudo quando negamos a Religião enquanto instituição, mas assumimos os seus valores morais! – o que é, afinal, a moral humanista? Igualdade, fraternidade – estes são os valores mais evidentemente cristãos! Mataram Deus, mas não tiveram coragem de matar seus valores? O que há por trás disso? A condição humana é agnóstica – é daí que devemos partir.