A CIPD do Cairo: além de 2014

A Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento (CIPD) das Nações Unidas reuniu 179 países na cidade do Cairo, no Egito, em 1994 e aprovou um Plano de Ação (POA) de 20 anos que representou uma mudança de paradigma com respeito ao debate populacional, à relação entre população e desenvolvimento e às políticas populacionais. A CIPD foi o maior evento de porte internacional sobre temas populacionais até então realizado e contou com os conhecimentos demográficos e mobilização de cerca de 11 mil participantes, representantes de governos, das Nações Unidas, de organizações não-governamentais e da mídia.

Nas duas conferências mundiais anteriores sobre população, organizadas pela ONU – Bucareste (1974) e Cidade do México (1984) – houve confrontos entre visões diferentes sobre população e desenvolvimento. Para alguns, a redução do crescimento populacional era essencial para o desenvolvimento, enquanto outros, “o desenvolvimento é o melhor contraceptivo”. Existia uma disputa para definir qual a prioridade das ações: se no controle da população ou na aceleração do desenvolvimento.

Mas este debate foi parcialmente superado, na medida em que a CIPD do Cairo representou uma nova perspectiva para o debate demográfico. A comunidade internacional estabeleceu um consenso sobre pelo menos três metas que deveriam ser alcançadas até 2014: a redução da mortalidade infantil e materna; o acesso à educação, especialmente para as meninas; e o acesso universal a uma ampla gama de serviços de saúde reprodutiva, incluindo o planejamento familiar.

Porém, embora tenha ocorrido diversos avanços, a equidade de gênero e a universalização da saúde reprodutiva são metas que estão ainda distantes daquilo que foi estabelecido. Além da persistência das práticas patriarcais, existem, no mundo, cerca de 215 milhões de mulheres sem acesso aos métodos modernos de contracepção, segundo estimativa da Organização Mundial de Saúde (OMS).

Mas a ONU decidiu que não vai fazer uma nova Conferência em 2014. No aniversário de vinte anos do Plano de Ação (POA) da CIPD, as nações do mundo deverão se reunir para reafirmar esses compromissos já estabelecidos e buscar formas de avançar para além de 2014.

Neste sentido o Fundo de População (UNFPA), da ONU, vai coordenar um processo de revisão do POA e definir um conjunto de novas recomendações para garantir a efetivação e o avanço das metas da CIPD. No site do UNFPA existe um link (CIPD além de 2014) com diversos documentos e informações.

Nos dias 12 e 13 de abril houve um encontro regional das Organizações da Sociedade Civil (OSC) do Caribe para a consulta sobre o processo de revisão da CIPD do Cairo + 20. A reunião ocorreu na cidade de Ocho Rios, na Jamaica, que divulgou a seguinte declaração (o original está em inglês):

ENCONTRO REGIONAL DAS OSC DO CARIBE SOBRE A CONSULTA CIPD CAIRO+20
Ocho Rios, Jamaica
12-13 abril 2012

A Declaração de Ocho Rios

As Organizações e redes dos países do Caribe – que falam Inglês, holandês, espanhol, crioulo e francês – presentes neste encontro, composto por representantes das Organizações da Sociedade Civil (OSC), incluindo mulheres, homens, jovens, pessoas vivendo com HIV, LGBT, profissionais do sexo, HSH, indígenas e povos indígenas, deficientes, organizações baseadas na fé e de outras redes da região do Caribe, sobre a questão da CIPD além de 2014 (ICPD Beyond 2014) reconhecem os ganhos que foram realizados em parceria com os Governos e dos principais “apoiadores” (stakeholders) nacionais e internacionais:

•    Aumento do nível educacional das mulheres, resultando em algumas melhorias em suas vidas e de suas famílias;
•    Promulgação de algumas leis e políticas em áreas como saúde sexual e reprodutiva e violência com base no gênero;
•    Redução mínima na mortalidade materna e HIV;
•    Declínio geral na fecundidade e aumento da esperança de vida.

No entanto, continuamos preocupados que 20 anos após o Consenso do Cairo, o Caribe continua vulnerável devido aos seguintes fatores:
•    Principalmente pequenos países em desenvolvimento insulares, com populações abaixo de 1 milhão de habitantes e, considerados países de renda média, ainda possuem um alto nível de disparidades sociais e econômicas;
•    Uma fraca base econômica devido à falta de diversificação e ao elevado endividamento resultam em limitada flexibilidade fiscal para investir em desenvolvimento, portanto, estando muito susceptíveis a choques;
•    Geograficamente propensos a desastres naturais;
•    Escassez de recursos humanos/fuga de cérebros

As conquistas têm sido desiguais e insuficientes e, em alguns casos, significativos retrocessos ocorreram, e hoje, há uma série de ameaças muito reais, que apontam para a necessidade de fortalecer a democracia em todos os níveis.
Nós continuamos a experimentar uma falta de vontade política e compromisso por parte dos governos para o Programa de Ação da CIPD. Como região, estamos atrasados no cumprimento de algumas das metas para 2014 e além, uma situação que piorou devido à retirada das principais fontes de financiamento para a região.
Esses compromissos continuam a ser relevantes e fundamentais para a subsistência dos povos do Caribe. O fracasso em cumprir estas promessas significaria a violação dos direitos humanos fundamentais, tais como os políticos, econômicos, sociais, culturais, saúde sexual e reprodutiva, o direito à educação, ao trabalho, a uma vida livre de violência e o direito ao desenvolvimento para milhões de homens, mulheres e jovens, de todas as idades, etnias, identidades, orientação sexual em toda a região do Caribe. A erosão desses direitos humanos pode resultar em custos proibitivos, além de condenar os povos do Caribe a situações de exclusão, violência e discriminação.

As Organizações da Sociedade Civil (OSC) e as redes regionais têm contribuído muito e têm participado ativamente do reforço da responsabilizar os governos no sentido de cumprir os seus compromissos.

O engajamento e a inclusão das vozes dos povos indígenas e das tribos, os deficientes, os jovens, as organizações baseadas na fé, LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexual e Trans) e organizações dos homens, neste processo, tem enriquecido o diálogo e tem redefinido os desafios de cumprir a agenda do Cairo.

Neste contexto, apelamos a todos os nossos governos do Caribe a reconhecer, implementar e reforçar os compromissos os quais eles concordaram e aceitaram em 1994 e 1999 e que foram reafirmados em 2004 e 2009, particularmente a promessa de promover e alcançar o desenvolvimento sustentável através de:

•    Garantir a plena participação das mulheres em todos os aspectos do desenvolvimento;
•    Desenvolver a capacidade de coletar, analisar e traduzir os dados em informações estratégicas para fomentar a formulação de políticas;
•    Desagregar e disseminar os dados para informar o processo de desenvolvimento e implementação de programas em todos os níveis;
•    Reconhecimento e proteção dos direitos e da saúde sexual e reprodutiva;
•    Desenvolvimento e implementação de educação sexual abrangente para os jovens, dentro e fora das escolas;
•    Fortalecimento das iniciativas de maternidade segura, incluindo o acesso ao aborto seguro;
•    Eliminação da violência baseada no gênero;
•    Reconhecimento legal e proteção dos direitos dos povos indígenas e tribais e todos os grupos minoritários, como os jovens em risco, LGBT, idosos, deficientes, doentes mentais e outras populações em risco (profissionais do sexo, homens que fazem sexo com homens e usuários de drogas);
•    Fortalecimento e aplicação de uma abordagem interdisciplinar das questões de gênero em todas as políticas nacionais;
•    Desenvolvimento de políticas e programas para a prevenção da gravidez na adolescência e a reentrada das mães adolescentes na educação formal;
•    Desenvolvimento de sistemas de apoio para pais subempregados, incluindo adolescentes;
•    Remoção de sanções / revisão de legislação, políticas e práticas que impeçam a prestação de serviços de SSR para menores de 18 anos de idade;
•    Garantir o acesso universal a serviços amigáveis de SSR para os jovens;
•    Promover a responsabilidade entre homens e mulheres, no sistema de cuidados por meio de um sistema de proteção e bem-estar social, com base na paridade de gênero, reconhecendo o trabalho doméstico não remunerado das mulheres (Consenso de Quito, 2007);
•    Fortalecimento e expansão de políticas de proteção social e sistemas baseados em princípios da partilha de responsabilidades.

Apelamos ao UNFPA e parceiros de desenvolvimento para:

•    Garantir a melhoria da capacidade das OSC para efetivamente colaborar com os governos e participar dos processos a nível nacional, regional e global da CIPD do Cairo: além de 2014;
•    Prestar assistência técnica para o estabelecimento e manutenção de uma coalizão OSC regional para a supervisão e monitoramento e avaliação da CIPD do Cairo: além de 2014;
•    Desenvolver a capacidade dos membros da coalizão OSC regionais para defender que os governos honrem os seus compromissos;
•    Auxiliar na mobilização de recursos para facilitar o item acima;
•    Auxiliar no reforço da cooperação entre as organizações nacionais da sociedade civil para alavancar recursos e maximizar o impacto;
•    Fortalecimento da coordenação e harmonização das respostas interagências e intergovernamentais, a nível nacional e regional.

As Organizações da Sociedade Civil (OSC) se comprometem a:

•    Manter e reforçar as parcerias com governos para facilitar o diálogo contínuo e tomada de decisão conjunta no que diz respeito ao acompanhamento e implementação do Programa de Ação (POA) da CIPD e suas revisões;
•    Criação de condições que garantam a transparência e responsabilidade para todas as dotações orçamentais relacionadas com a CIPD;
•    Continuar mantendo e promovendo os avanços feitos no âmbito dos arranjos globais da CIPD;
•    Reforçar a advocacia (advocacy) para a implementação de políticas e legislação;

Por uma questão de prioridade recomendamos o seguinte:

•    Ratificar, aplicar e fazer cumprir todos os instrumentos de direitos humanos que estão ligados ao POA da CIPD;
•    Garantir o empoderamento econômico, político e social das mulheres e a sua plena participação na tomada de decisões em todos os níveis;
•    Fornecer um pacote abrangente de serviços de saúde sexual e reprodutiva, que inclua o planejamento familiar, o acesso ao maior número possível de anticoncepcionais, incluindo a contracepção de emergência; educação sexual abrangente, um continuum de cuidados pré-natal e pós-natal, assistência ao parto por profissionais de saúde qualificados e cuidados obstétricos de emergência e prevenção. Diagnóstico e tratamento das DST, inclusive HIV e acesso ao aborto seguro e cuidados pós-aborto;
•    Apoiar o desenvolvimento e o fortalecimento de mecanismos de proteção social, legislação e políticas destinadas a reduzir a vulnerabilidade e os riscos relacionados às desigualdades sociais e econômicas;
•    Preservar os direitos dos povos indígenas e tribais, populações migrantes, pessoas com deficiência e outros grupos vulneráveis;
•    Tomar medidas completas para eliminar todas as formas de exploração, abuso, assédio e violência contra jovens, adolescentes e crianças;
•    Tomar todas as medidas para eliminar todas as formas de violência de gênero, incluindo abuso sexual e violência;
•    Tomar medidas plenas para identificar, investigar, processar e eliminar todas as formas de tráfico humano na região do Caribe;
•    Tomar medidas completas para desenvolver protocolos e treinar os trabalhadores de ponta da saúde e outros prestadores de serviços relevantes na prevenção, detecção e gestão de violência baseada no gênero;
•    Coletar, desagregar, analisar, divulgar e traduzir os dados em informações estratégicas para fomentar a formulação de políticas em todos os níveis;
•    Promover uma reforma legal e constitucional para assegurar a plena fruição dos direitos humanos e qualidade de vida de acordo com as normas internacionais;
•    Aumentar os esforços para cumprir os compromissos financeiros para implementar o POA CIPD.

About the author

José Eustáquio Diniz Alves