Apontamentos sobre Anarquismo: embates com o Marxismo e o uso do termo “Esquerda”.
Apontamentos sobre Anarquismo: embates com o Marxismo e o uso do termo “Esquerda”.
(por Paulo Vinícius N. Coelho; Professor de Filosofia e Sociologia;Cientista Social).
Socialismo Libertário.
O Anarquismo originalmente é um movimento socialista e comunista (sendo o “comunismo”: a imaginada etapa posterior a uma transformação socialista das sociedades capitalistas, segundo propostas anarquistas ou marxistas; a desejada superação da condição de divisão em classes das sociedades humanas, dissolução dos Estados; fim das hierarquias de poder; superação da situação de exploração do trabalho humano por parte de uma classe no controle dos meios de produção e do aparato estatal) e como tal carrega o desejo de realização de uma sociedade sem classes sociais, baseada na igualde e liberdade, coletivização dos meios de produção, sem hierarquias de poder, sem Estado, alicerçada na autogestão, modelos de democracia direta e assembleias populares, livre de todo tipo de exploração, para que, então, a humanidade possa ser liberada para o desenvolvimento de potencialidades criativas.
Sobre o termo ” Esquerda”.
Como os partidos socialistas marxistas de várias tendências, os movimentos anarquistas são classificados tradicionalmente dentro do espectro ideológica da “Esquerda”, exatamente por estarem alinhados ao movimento socialista mais abrangente.
Não tenho problemas com o uso do termo “Esquerda”, mas quem o rejeita, alegando ser “apenas uma convenção criada na segunda metade do século XVIII, durante a Revolução Francesa, para identificar a parte mais radical do movimento liberal”, tem alguma razão; no entanto, não me parece muito importante polemizar isso, desde que se compreenda que , desde o século XIX “Esquerda” inclui os movimentos socialistas e é preciso recordar, também, que dependendo da circunstancia ou lugar, “Liberais” ainda são vistos como “Esquerda” (nos EUA, por exemplo). Temos, então, uma questão de esclarecimento filosófico e histórico; um problema de “esclarecimento sobre o uso do termo” e sobre qual seria a real necessidade de seu uso, visto que se trata de uma mera terminologia para organizar o debate político segundo um espectro ideológico.
Quem não simpatiza com o termo “Esquerda”, entende que o anarquismo deveria livrar-se desse rótulo criado pelos liberais e assumido pela maior parte dos marxistas, dado que isso mais confundiria do que ajudaria na causa anarquista e, sendo o anarquismo um movimento inerentemente “rebelde” e anti-sistema, não haveria motivo suficiente para aceitar a terminologia liberal (o que é algo a se pensar e sem dúvida faz sentido).
Embates entre Anarquismo e Marxismo.
Os anarquistas ajudaram a fundar a Primeira Internacional dos Trabalhadores em 1864 , mas a rivalidade com Marx e Engels ( ainda vivos na época) se fez sentir no interior da associação, primeiro por causa das críticas de Marx à obra de Proudhon e a outros anarquistas vistos como “românticos”(críticas que me parece fazem algum sentido, em parte) e depois com o embate entre Bakunin e Marx.
Bakunin apontava no pensamento de Marx uma tendência ao autoritarismo, quando Marx e seus seguidores defendiam a necessidade de tomada do Estado por parte de um “partido” ou movimento que representasse a classe trabalhadora organizada (para a realização da “revolução da classe proletária”). Tal “partido” ou “movimento” seria liderado por uma “vanguarda” da classe trabalhadora, o que, dependendo da perspectiva, pode ser visto como uma afirmação de hierarquização da organização política da classe.
Dado que o Estado é “uma ferramenta de controle e imposição de interesses, da classe dominante sobre as demais” (no capitalismo a classe burguesa), se uma classe substituir a outra no controle do Estado ainda teremos o uso do Estado como “ferramenta de opressão e controle social”, configurando uma ditadura. Marx reconhecia o papel autoritário do Estado, por isso apontava no capitalismo a “ditadura da burguesia no controle do Estado” e se os trabalhadores chegassem ao poder teríamos, então, obviamente, a “ditadura do proletariado”, visto que no socialismo de viés marxista o Estado seria mantido por um tempo até ser possível sua dissolução e finalmente o comunismo propriamente dito. Mas é infelizmente verdade que, na prática, os “supostos regimes marxistas”, ou que diziam se inspirar no marxismo, viraram “ditaduras permanentes”, dado que não dissolveram o Estado e não avançaram ao comunismo (há muitas supostas justificativas para tal, como por exemplo : uma situação de “guerra” permanente contra as nações capitalistas, pois, para se concretizar realmente o ideal comunista o mundo todo deveria chegar ao mesmo patamar; o fato é que as “elites dirigentes” dos partidos auto-denominados marxistas se mantiveram no controle do aparato Estatal em países como Cuba, URSS, Coréia do Norte, impondo violentamente seus interesses sobre a classe trabalhadora que diziam “representar”).
A disputa dentro da Primeira Internacional piorou depois da “Comuna de Paris” (1871) quando muitos anarquistas morreram lutando contra as tropas francesas (França recebe apoio do então “Império Alemão” para derrotar a Comuna) , Bakunin sobrevive , mas com seu grupo enfraquecido amarga uma expulsão da Internacional em um movimento articulado por Marx e seus seguidores que se aproveitam da situação, o que foi algo muito reprovável e sugere, sem dúvida , uma tendência autoritária por parte de Marx e Engels. Após a cisão a Internacional definha e temos na prática o desenvolvimento de uma “Segunda Internacional” a qual irá ser efetivada realmente em 1889 sob a liderança de Engels e sem a participação do movimento anarquista.
A Terceira Internacional surge na URSS em 1919, sob o bolchevismo e ganha o nome de “Internacional Comunista” ainda durante a gestão de Lênin. O regime soviético “patrocinou” vários “Partidos Comunistas” pelo mundo e adotou um hino para a Internacional que era, “ironicamente”, o mesmo hino criado durante a “Comuna de Paris” pelo anarquista Eugène Pottier, se apropriando em parte da simbologia comunista e anarquista.
Por sua vez os trotskystas (divididos em inúmeras tendências) fundam “algumas” “Quartas Internacionais” e partidos que irão disputar eleições e sindicatos (como PSTU, que segue o trotskysmo de Nahuel Moreno) ou correntes que participarão de partidos reformistas como PSOL e Centro-Esquerda eleitoreira e reformista como PT.
No Brasil o movimento anarquista, que foi muito forte na primeira metade do século XX com “Greves Gerais” (proposta originalmente atribuída aos anarquistas), começou a enfraquecer durante a ditadura do “Estado Novo” de Vargas. Muitos anarquistas foram expulsos do país ou assassinados. Ainda antes de Getúlio, em 1922 o “bolchevique” PCB foi criado com a participação de alguns anarquistas (que mudaram de orientação) em sua fundação, sob influência soviética, partido este que foi muito forte mesmo sob pressão do governo Vargas nos anos 30 e 40 até o Golpe Militar em 1964, mas acabou definhando com acúmulos de erros internos, consequências da divisão em alas (PCB e PC do B); polêmicas acumuladas de anos passados tais como a atitude de Luís Carlos Prestes apoiando Vargas (mesmo com a deportação de Olga, sua esposa grávida, para a Alemanha Nazista), com justificativa de estratégia “patriótica” dadas as ameaças ao Brasil por parte da Direita entreguista sob influência estadunidense; divergências entre stalinistas e críticos ao stalinismo (refletindo mudanças na URSS na época)… A militância do PC brasileiro sofreu pesada perseguição na clandestinidade na luta contra a ditadura e, por fim, PCB e PC do B (criado em 1958, afirmando-se como de tendência stalinista, o qual surgiu como uma dissidência do PCB original) caíram no jogo burguês da “democracia liberal representativa” no “pós ditadura” a partir dos anos 80. O atual PCB é hoje um partido considerado pequeno e vem mantendo uma militância “bolchevique leninista” mais crítica à institucionalidade vigente, já o PC do B é um partido que se perdeu dentro do “modelo liberal de democracia” em alianças com o PT e até mesmo algumas vezes com a Direita Declarada (MDB, PP, PL, PSC, etc, quando ainda fazia parceria com PT e PSB no governo federal ou em coligações com outros partidos nas unidades da federação). Do PCB ainda derivou o PPS (criado em 1992), também assimilado pelo jogo da democracia burguesa ( participou do governo Temer).
Os bolcheviques (de vertentes variadas), por causa do poder de regimes como a URSS, China, Cuba, ganharam muita força dentro da “Esquerda” no século XX e dominaram o movimento marxista e socialista até que os social-democratas contemporâneos começaram a ganhar mais espaço nos anos 80 no Brasil , o que na Europa Ocidental já acontecia no pós guerra com as políticas de “Estado de Bem-Estar Social” (tática reformista útil à manutenção da máquina do sistema capitalista já que oferece um alívio ilusório na exploração da classe trabalhadora, maquiando o capitalismo; típica política de social-democratas, “liberais sociais” e trabalhistas, reformistas em geral). Lembrando que a social-democracia já foi mais combativa, aliás, foi o “Partido Social Democrata Russo” que deu origem a ala Bolchevique leninista e trotskysta.
Os anarquistas guardam memórias das perseguições bolcheviques. Na Ucrânia, por exemplo, muitos anarquistas do “Exército Negro” (conduzido por Makno) foram mortos em 1920 pelo “Exército Vermelho” comandado por Trotsky, seguindo ordens de Lênin, mesmo após terem auxiliado os bolcheviques nos combates contra o “Exército Branco”. E hoje é comum “autodenominados marxistas” sabotarem sindicatos ou denunciarem manifestações anarquistas. Agora, o que é “ser marxista”, eis aí uma questão complexa dado que há muitas subdivisões nesse movimento assim como há muitas subdivisões no movimento anarquista, porém, ideias básicas podem ser apontadas para identificar as tendências marxistas e uma delas é a defesa da tomada do Estado e rechaço às propostas fundamentais libertárias do anarquismo, seguindo uma simpatia por hierarquias de poder e culto a lideranças políticas, excesso de “personalismo” e participação na democracia representativa liberal, tudo isso obviamente oposto à base do anarquismo (Socialismo Libertário).
Com relação ao problema do Estado.
A proposta anarquista (há muitas, mas vamos destacar uma) com relação ao Estado, durante o processo revolucionário, é substituir imediatamente a estrutura estatal por formas de organização autogestionárias, seguindo modelos de democracia direta e assembleias populares, com coletivização imediata dos meios de produção, formando comunas (internamente organizadas com base em sindicatos ou cooperativas e assembleias populares) interligadas em um sistema federativo, armando toda a população para a defesa da “federação de comunas”. Tal modelo poderia assemelhar-se a um “Estado” como alguns críticos apontam, mas, dado que a horizontalidade decisória deve ser o pilar e a participação ativa de todos os integrantes desse modelo de sociedade deve ser buscada, a ideia de “instituição de controle e de opressão de uma classe sobre as demais” (características de Estado) tenderia a ser dissipada, embora, alguém poderia dizer também que os anarquistas teriam que usar algum tipo de “disciplina de controle” para impedir a implosão do modelo, devido a ataques internos de inimigos disfarçados ou declarados e para melhor poder enfrentar inimigos externos que obviamente iriam continuar existindo, até que tal modelo fosse estendido a todo o globo ( o que me parece uma utopia distante e muito difícil de ser realizada, infelizmente). Tal modelo exigiria “consciência de classe” o que, para alguns anarquistas, só poderá surgir depois de intenso processo de educação para a autonomia, já outros apostam em um tipo romântico de “espontaneísmo” ou que é necessário “dar algum exemplo” para despertar a revolta, incitar revolta na base da classe trabalhadora… Tudo isso é especulação já que não temos exemplos da implantação dessas propostas em grande escala na história, apenas experiências locais em pequenas comunidades (o que já impõe outro modelo).
Sobre viver o anarquismo hoje.
Viver ideias socialistas em geral (anarquistas ou marxistas) é muito difícil hoje, dado que o capitalismo aprofundou-se de tal forma que contaminou todas as esferas da ação humana e a cultura de quase todas as sociedades no planeta. Mas é possível colocar em prática propostas anarquistas de autogestão em grupos e pequenas comunidades, cooperativas, propostas mutualistas, educação para autonomia racional e criativa, evitar hierarquias de poder ou evitar tratar outras pessoas sob influência de hierarquias de poder e valores burgueses… Agora, agir de forma mais combativa contra o sistema, como os anarquistas revolucionários do século XIX, infelizmente me parece inviável para um movimento que hoje é minoritário e sem armas, sem dinheiro, sem mídia, sem apoio da própria classe (ludibriada pela ideologia da classe dominante, igrejas e partidos pelegos). Tentar atacar o Estado (braço armado do Mercado, ferramenta da burguesia) com paus e pedras, é quase suicídio, eis a tragédia da “Esquerda Socialista”.
Quando grande parte da “Esquerda” decidiu aderir ao jogo da “democracia liberal representativa” a derrota foi decretada, sair desse sepulcro será difícil.
As tecnologias hoje disponíveis poderiam possibilitar a transformação das sociedades humanas para algo próximo dos ideais anarquistas socialistas, no entanto o poderio bélico dos Estados e, por consequência, da classe dominante, aumentou e as novas tecnologias também permitem um maior controle e monitoramento de populações. Se nos séculos XIX e XX (antes das grandes guerras) as tecnologias eram arcaicas e dificultavam uma mais eficiente “nova organização social” aos moldes dos planos anarquistas, a luta armada e revoltas populares pareciam ser mais viáveis (mesmo assim foram todas “massacradas” pelos Estados). Hoje as tecnologias são mais eficientes, mas os Estados se fortaleceram também com elas.
“Apesar dos pesares”, das perseguições dos Estados, traições dentro do front da classe trabalhadora, açoites do Mercado, há anarquistas por aí ainda, alguns se aventuram contra a repressão estatal e são perseguidos, outros espalham arte e ideias, outros estão enfrentando pelegos dentro de sindicatos, alguns se “isolaram” em comunidades alternativas (há muitos tipos de anarquismo, não esqueça), outros são hackers, há pacifistas, há militantes rebeldes “revolucionários” mais combativos, feministas, antirracistas, cosmopolitas, a maioria lutando por direitos da classe trabalhadora e pelo fim da opressão contra as minorias, há militantes da causa dos “direitos dos animais”, alguns desenvolvem tecnologias alternativas para possibilitar alguma autonomia para trabalhadores mais pobres…
Talvez um dia surja uma possibilidade real de transformação das sociedades humanas para algo mais positivo (não sabemos quando), o anarquismo (ou os anarquismos) trazem propostas para tal. A humanidade precisa mudar seu rumo, pois, se continuar neste ritmo do “capitalismo voraz”, o fenômeno humano estará fadado a aniquilação ou a aprofundar suas mazelas ao deteriorar sua própria condição de vida no planeta, flagelando a si mesmo como espécie. A possibilidade da mudança não cairá do céu, cabe a nós construirmos a estrada, desenvolvermos alternativas.
A bandeira anarquista ostenta ainda um “otimismo” com relação a possibilidade da espécie humana libertar-se das armadilhas que criou para si mesma ou, sob outro ângulo: a esperança na possibilidade da maior parte da humanidade se levantar contra a ganância e estupidez de uma minoria que suga o esforço de bilhões e atrapalha o desenvolvimento pleno das potencialidades criativas da espécie (o que apenas em uma situação de liberdade, ausência de exploração e opressões, quando os meios de produção estiverem ao serviço de toda a espécie e as mazelas de cunho material forem resolvidas, poderá se aproximar da efetivação).