Antitextos By fabricio kc / Share 0 Tweet Contexto: O projeto/coletivo Passa Palavra publicou um artigo intitulado “A esquerda fora do eixo”, abordando as “últimas mobilizações em São Paulo e apontando a fragilidade prática e teórica da esquerda num cenário de ascensão e transformação econômica”. Inicialmente o texto faz uma resenha política, por assim dizer, dos movimentos livres que aconteceram em São Paulo, incluindo a Marcha da Liberdade, que ampliou-se para uma mobilização nacional, realizada no dia 18 de junho, envolvendo pelo menos 40 cidades em todo o Brasil. Em seguida apresenta a sua visão do Coletivo Fora do Eixo (um dos núcleos articuladores da Marcha), analisa as relações do Coletivo com a esfera pública cultural e política e também com o mercado da cultura. Por fim, acusa fragilidade política e social nos movimentos por eles não apresentarem um conteúdo político efetivamente e estruturalmente transformador, e acusa o Coletivo Fora do Eixo de vislumbrar, através de certa apropriação simbólica dos movimentos, a ampliação de sua representatividade perante possíveis públicos de suas ações culturais e de negócios alternativos. Como resposta a este artigo, a pesquisadora Ivana Bentes publicou no blogue trezentos o texto “A Esquerda nos Eixos e o novo ativismo”, no qual defende os movimentos em questão como uma forma de participação social, cultural e política que reflete as novas conjunturas do capitalismo cognitivo e das novas ferramentas tecnológicas que propiciam articulações em rede, descentralizadas, que embora não proponham um novo sistema como alternativa ao capitalismo, criam novas dinâmicas e reinventam processos dentro do próprio sistema, renovando-o, hackeando-o, através de novas estratégias e modelos de ação coletiva autônomos e inovadores. Para reforçar a sua posição, Ivana Bentes faz uma defesa conceitual da importância do Coletivo Fora do Eixo e tacha o artigo do Passa Palavra de velha esquerda incapaz de lidar com as novas formas de mobilização e de compreender os novos cenários, novos agentes e incertas possibilidades do capitalismo cognitivo. Comentário A minha análise, bem simples é verdade, conclui que Ivana Bentes acerta, confirmando seu profundo e amplo conhecimento sobre os temas em pauta, em todos os argumentos aos quais recorre para oferecer um panorama conceitual dos atuais processos sócio-políticos e culturais, que se baseiam e se alimentam de movimentos transversais e heterogêneos. Mas erra ao aplicar todos esses argumentos também às ações e escopos do Coletivo Fora do Eixo, como se o Coletivo fosse um exemplo suficiente desses novos processos. Eu creio que o Fora do Eixo ocupa um lugar importante no cenário cultural e sobretudo no mercado criativo do Brasil de agora, mas essa defesa entusiasmada de Ivana Bentes falha ao corroborar o artigo do Passa Palavra ao mesmo tempo em que quer negá-lo: afinal, acaba por centralizar e personificar todos os potenciais dos movimentos livres no modelo de atuação do Fora do Eixo, tornando-o protagonista de um processo em que ele é apenas coadjuvante! O afã de defender as estimulantes e múltiplas possibilidades de um novo capitalismo acabou por resultar numa defesa desnecessária e sobretudo superestimada do Coletivo Fora do Eixo! Vejo com clareza que o Coletivo Fora do Eixo não é de esquerda nem de direita, mas uma rede de entidades (inclusive empresariais) que realiza e participa de ações que mantêm escopos relacionados ao mercado da cultura e acabam por percorrer esferas diversas da participação política, seja colaborando com o Governo na elaboração dos editais em que eles mesmos concorrem, seja centralizando a articulação de movimentos livres, de classes médias, com bandeiras ativistas amplas (ainda que resumidas na ideia central de Liberdade). Romantizar o Coletivo Fora do Eixo também não é caminho pertinente. Se Pablo Capilé queria o patrocínio da Coca-Cola para realizar a marcha da Liberdade, eu não vejo motivo para discussão (embora eu considere isso lastimável). Mas para quem acompanha minimamente as ações do coletivo no que se refere às articulações ativistas nas redes, fica patente a posição hierárquica de liderança assumida por Pablo Capilé, demonstrando, pelo menos na dimensão prática, uma estrutura hierárquica bem definida (e legítima, sem dúvida). Logo, o Coletivo constitui um exemplo de inovação e de exploração de novas potencialidades de mercado cultural dentro do sistema, mas não vai muito além disso – muito menos alcança um patamar de vetor político dos jovens que usam Twitter e Facebook. Por fim, acho que o artigo do Passa Palavra não merece a desqualificação conjuntural que Ivana Bentes tentou justificar apontando, inclusive, a falta de um arsenal teórico e afirmando que o artigo reflete medo e ressentimento de uma esquerda ultrapassada diante das mudanças estruturais. Ressentimento, sinceramente, percebi em ambos os artigos (cada um a sua maneira e por razões diversas), mas o artigo do Passa Palavra traz sim reflexões pertinentes que exigiriam não uma refutação apressada, mas sim um debate mais cauteloso. Por exemplo: As Marchas da Liberdade trazem em si – para além do seus significantes simbólicos – um efetivo poder de transformação política e social das atuais estruturas de poder? Claro que a marcha e as suas dinâmicas de articulação (que envolvem diretamente ferramentas da web) contribui para, quem sabe, o fortalecimento de novos processos de participação – mas não acho justo argumentar que as classes médias conectadas, interessadas em consolidar estilos de vida consumistas/sustentáveis – sem objetivar uma mudança estrutural nos modelos de produção hegemônicos – são o novo vetor da ação política verdadeiramente transformadora. (Ivana Bentes até argumenta que esse modelo de organização da Marcha da Liberdade pode vir a envolver “os pobres e precários das periferias e favelas” – esse argumento merecia mais do que uma linha! ). O Coletivo Fora do Eixo é mesmo o melhor emblema desses novos movimentos e possibilidades que estão surgindo dentro do capitalismo chamado cognitivo? O Coletivo tem como base a autonomia, liberdade e um novo “comunismo”, como afirmou Ivana Bentes? (e o fez, aliás, num trecho de sua resposta que é obscuro e cheio de talvezes, que é o item 4 dos problemas que a autora enumera). Há, na abordagem de Ivana Bentes, contradições importantes dos movimentos em questão que foram ignoradas. O objetivo deste pequeno texto, portanto, é unicamente ampliar o debate para que os movimentos livres nascentes cresçam em potência e em alcance e, sobretudo, consigam o êxito de se inserirem, com algum grau de efetividade, nos reais processos de transformação social que são, pensando nas novas tendências, autenticamente autônomos, independentes e inevitáveis!