Motivação, um movimento ideológico?

Uma reflexão sobre as motivações e ideologias que atravessam o trabalho de profissionais de saúde (especialmente médicos) venezuelanos, cubanos na Venezuela e brasileiros.

Ainda que possamos admitir que a ideologia muitas vezes é massificante, totalizante, anuladora das diferenças. Ainda que levemos em consideração que ela se encontra na esfera da representação e pode ser produtora de alienação. Não podemos deixar de levar em consideração as diferentes motivações que essas ideologias produzem e refletir um pouco a respeito. Afinal elas estão aí e, muitas vezes de forma bastante acrítica, as reproduzimos, as transmitimos.

Visita domiciliar na periferia de BarquisimetoPrimeiro vamos falar dos cooperantes. É instigante que tantos cubanos alistem-se nas missões internacionalistas de seu país. Só na Venezuela eles beiram os 10.000. Alguém poderia dizer que estão fugindo de seu país, de um Estado "opressor" e "miserável", e eu já escutei muito isso. Bom, só pode considerar isso verdade aquele que considera Serra Leoa, Angola na época da guerra civil, Timor, e tantos outros países latinoamericanos, africanos e asiáticos em situação mais agradável do que a cubana. Definitivamente não é este o caso. Ainda que na Venezuela tenham posição, em geral, mais confortável isto não é uma regra. Afinal eles vão habitar e trabalhar em regiões bastante pobres (até miseráveis) ou inóspitas, ou seja, as periferias e favelas das grandes cidades, a zona rural, regiões fronteiriças onde convivem com as tensões trazidas pelos conflitos armados da Colômbia (paramilitares e guerrilheiros) etc. Se ainda assim fossemos fechar com a hipótese da fuga, teríamos que levar em consideração que cada pessoa pode ficar no máximo 5 anos em missão, devendo, após este período, retornar a Cuba.
Podemos supor que os salários nos países que os recebam possam ser mais encorajadores. Não é o que ocorre na Venezuela. Ali quem realiza o pagamento dos profissionais em missão é o Estado cubano, o qual é pago pelo governo venezuelano em petróleo.
Entrevistei os cooperantes, das mais diversas categorias profissionais, sobre o assunto. Eles nos informam que o processo todo é voluntário, a missão é divulgada pelo país e aqueles que estiverem dispostos alistam-se. Consideram esse trabalho extremamente importante em diversos aspectos, ressaltados em diferentes intensidades por cada entrevistado. Sentem-se honrados em poder levar uma assistência à saúde de qualidade para pessoas que até então não tinham nada, tirando um ganho pessoal dessa experiência de vida. São instigados pela complexidade profissional que se lhes apresenta, a Venezuela possui uma diversidade de patologias que não existem ou que já foram totalmente controladas em Cuba (assombram-se com a quantidade de adolescentes grávidas, intoxicações por drogas, doença de Chagas, leishmaniose, acidentes com animais peçonhentos etc). Também é considerada uma honra poder contribuir com o processo revolucionário socialista de outra nação. Por fim, ao retornar à ilha, o reconhecimento moral que recebem lhes é inestimável.

Consultório Popular em zona ruralDentre os profissionais venezuelanos também passa o discurso da construção da revolução. Foi assim que diversos médicos abandonaram seus antigos trabalhos e especialidades (são ex-intensivistas, ginecologistas, cirurgiões, infectologistas, só para falar daqueles com quem conversei…) para dedicar-se a uma nova, à Saúde da Família, ali chamada de Medicina General y Integral. É assim também que as pessoas das comunidades cedem espaços de suas casas para a instalação dos consultórios populares, dedicam-se a construir um território junto com o médico que está chegando para trabalhar na sua área. Ajudam na faxina dos consultórios, na alimentação dos profissionais, nas visitas domiciliares, nas necessidades de cada dia. Acima de tudo estão bacando o projeto, assumindo um chamado realizado pelo presidente, acreditando na factibilidade de uma revolução que vai melhorar a vida das pessoas.

Não posso deixar de tecer minha opinião sobre o que acontece no Brasil. Mas aqui, pelo que as pessoas trabalham? Tenho visto de tudo. E é preciso que se reconheça que o SUS só existe e em certa medida dá certo devido ao esforço e empenho de muitos profissionais extremamente engajados, seria tolice minha postular no que estão engajados, se na estabilidade que o serviço público funciona, ou na contrução de uma saúde pública, na assistência de qualidade ao usuário etc…
Existem coisas lindas ocorrendo país afora. Fim de semana antes do carnaval, uma diversidade de trabalhadores que nada mais ganhavam por trabalhar no sábado, dedicavam suas tardes (no fim das contas quase o dia todo) para levar seus pacientes, portadores de diversas afecções de saúde mental (muitas graves e crônicas), para que em mais um momento de suas vidas pudessem brincar e pular carnval como todas as outras pessoas, pudessem seguir um trio elétrico e se sentirem incluídas na sociedade. Mesmo sob a constante chuva! Emocionante.
Bloco Unidos do Candinho, retirado do site do serviço de saúde mental Candido Ferreira
Para compensar também vemos exemplos que são extremamente tristes. Radicais, extremos, que causam repulsa e indignação. Colegas médicos que mamam nas tetas do Estado! Contratados para trabalhar 36h por semana, mas pressionam os outros profissionais, conseguem agendar todos os pacientes que deveriam atender por um dia inteiro para fazê-lo em uma ou duas horas! E isso é tão extremamente comum! Trabalhadores das diversas categorias que de repente faltam ao serviço, lançam atestados médicos, mas são encontrados na praia, no shopping, passeando tranquilos e saudavelmente. Ainda que tenham suas necessidades, ainda que não considerem seus salários justos, não estão aí para brigar para que melhorem, por melhores pagamentos ou condições de trabalho, estão aí para parasitar (e enganam-se se creem que parasitam apenas o Estado dos políticos corruptos, parasitam o bolso e os impostos de todos os brasileiros).

Um seminário a respeito do trabalho médico no SUS, em Campinas, enumerou diversos motivos pelos quais os médicos não vão trabalhar na atenção primária em saúde (base de qualquer sistema de saúde eficiente, econômico, equânime e bem desenvolvido mundo a fora). Mas quais são os motivos que os levam a trabalhar? O que os leva a trabalhar na atenção primária? O que os leva a preferir, muitas vezes, consultórios privados sob o pagamento de comissões aviltantes, submeter-se a altíssimas taxas para filiar-se a cooperativas médicas, serviços hospitalares privados tão mal-estruturados e de baixa qualidade quanto o pré ou pós – conceitos supõe que sejam os públicos? Alguns diriam que o poder sobre a equipe, ainda mais absoluta nos serviços privados. Não sei… Qual a ideologia que atravessa esse tipo de comportamento? Deixo para a discussão…

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Bruno Mariani Azevedo