Crítica By .hi-fi. kuwakino / Share 0 Tweet No Brasil tivemos Clementina de Jesus e tantas outras cantoras que partiram de uma fonte de inspiração acessível não somente em terras brasileiras: esta se disseminou também em outros países vizinhos da América do Sul, como o Peru, aonde Susana Baca, cantora compositora e pesquisadora desse país, é hoje a principal interlocutora de toda uma cultura afro-peruana, tão rica quanto a brasileira, para o mundo. Muitas das referências que fundamentam o canto popular no Brasil, é sabido, foram preservadas e retransmitidas através do registro de artistas do povo, como Clementina de Jesus, em cujo repertório se manteve vivo todo um legado – cantos de trabalho, partidos-alto, ladainhas, jongos, corimas, pontos de macumba e tantas outras manifestações afro-musicais –, necessários para a compreensão do que é hoje a música popular brasileira. Aqui tivemos Clementina e tantas outras cantoras que partiram de uma fonte que, contudo, não foi exclusiva somente em terras brasileiras: esta também se disseminou em outros países vizinhos da América do Sul e, ao se conhecer essas músicas de lá, é de imediato perceptivel o parentesco, não apenas por causa da proximidade geográfica, mas pela mesma identidade musical presente nas danças, nos ritmos, nos temas abordados nas letras e nas batidas percussivas. Um exemplo desse parentesco vem à tona de imediato com o trabalho mágico de Susana Baca, cantora peruana que há quase três décadas tomou para si a empreitada de ser a referência essecial e atual da música popular de seu país para o resto do mundo – assim com é sua conterrânea Chabuca Granda, cantora e compositora – por meio da comoção que sua cândida voz e expressão corporal que transforma sua imagem feminina, aparentemente tão frágil e delicada, num colosso imprevisível de beleza e lirismo regional, assim como pelo árduo trabalho de preservação e resgate de cantos e discursos folclóricos musicais que até então estavam olvidados na penumbra das cordilheiras, das costas, das selvas e dos desertos de sua terra. Tal como ocorre no Brasil, o Peru apresenta uma diversidade musical imensurável, com suas marineras, tonderos, valses, landós, huaynos, villancicos (cânticos natalinos) e um enorme cancioneiro, tão variado e miscigenado, que vai muito além do estereótipo dos grupos de música andina populares que empunham suas zampoñas, quenas e charangos nas ruas de tantas metrópoles Brasil e mundo afora. E justamente esta diversidade que se beneficia através do trabalho de pesquisa de Susana, que junto com o marido Ricardo Pereira, fundou em 1997 o “Instituto Negro Continuo”, que possui como finalidade a investigação e divulgação da cultura afro-peruana, por meio da manutenção de uma biblioteca, arquivos, estúdios de gravação e estúdio de dança. Em entrevista ao Sovaco de Cobra, Susana falou um pouco deste trabalho de pesquisa e de seu processo de criação – que bebe não só da fonte da música peruana, mas de todos as culturas afro de outros países como o Brasil (Susana já gravou Milton Nascimento, Caetano Veloso e mais recentemente, Gilberto Gil, em seu último disco Travesias, de 2006): Zé Carlos Cipriano: Assim como o Brasil tem suas origens e tradições musicais miscigenadas, o Peru também tem a sua música advinda de origens muito similares. Como você, artista e representante da música popular peruana, se coloca como figura fundamental e intérprete da música de seu país? Susana Baca: Bom, creio que o que cabe a mim interpretar é a minha vivência, é o fato de ter nascido numa familia de afro-peruanos, de afro-andinos – você sabe que essa mistura de negros e índios resultou nessa presença andina, a qual eu tenho em mim. Venho trabalhando muitas dessas músicas, como por exemplo os cantos de natal. Percorri a costa do Peru, recolhendo materiais, a presença da música de muitos artistas que não tiveram reconhecimento, que sequer foram entrevistados alguma vez… Zé Carlos: Isso se deu através dos esforços e do trabalho do seu Instituto Negro Contínuo, não? Susana: Sim, Primeiramente iniciamos a investigação, percorrendo todo o Peru e depois veio a questão? deixamos tudo isto só para nós ou compartilhamos? Então nos o compartilhamos: e está aí numa biblioteca que cada vez mais dispõe de gravações, documentos de vídeos, registros, coisas que temos feito durante todos estes anos. Zé Carlos: Fale-me um pouco sobre seu processo criativo, cujo resultado pude conferir nas músicas apresentadas no palco: uma mistura rica dos ritmos peruanos, como o landó, o vals peruano, com ritmos afro de outros paises, como Brasil e Cuba. Como isso funciona? Susana: Percorremos muito o mundo e deixamos contaminar, felizmente – para o bem –, a nossa música. Estivemos no Brasil muitas vezes, estivemos na Bolívia, Equador, Colômbia e tantos outros países, compartilhando muitas vezes com artistas de outras partes. E isso ocorreu também no resto de mundo: estivemos em diversos festivais que falam das raízes da África, das raízes da América, onde haviam artistas americanos, africanos e, sabe, foi muito bonito ver como de pronto, Juan Megrano Cotito [percussionista que acompanha Susana há muitos anos], que toca cajón, tocando junto com um homem com seus tambores cossascos, estando lá os dois compartindo juntos a música. Essa é a beleza: eu sinto que a musica é uma linguagem que nos une. Uma linguagem que une povo.