Crítica By Augusto Maurer / Share 0 Tweet A segunda parte deste ensaio é dedicada ao exame da crítica musical de Bernard Shaw; de ressonâncias entre sua visão da cena musical vitoriana e aquela de Mikhail Bakhtin em relação à cultura cômica medieval; e, finalmente, de sua importância para compreensãoo do contextos musicais contemporâneos Tais fatos já nos permitem falar de um tipo especial de riso dominante da literatura crítico-musical de Shaw, de acento cômico-satírico, alcance universal, função desmistificadora, regenerativa ou destronante e explicitamente a serviço de ideais utópicos – a recusar, portanto, sua designação como uma forma reduzida de riso, conforme expressão cunhada por Mikhail Bakhtin, em sua obra Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento – o Contexto de Rabelais, para distinguir o riso popular medieval de outros, irônicos e negativos, verificáveis em literaturas posteriores à do Renascimento, tais como a de Shaw. Ora, mas se os traços distintivos acima enumerados do riso shaviano, a saber, sua comicidade, universalidade, ambivalência (destronamento e regeneração) e aspiração a um melhor porvir coincidem exatamente com aqueles reconhecidos por Bakhtin, em sua obra, como atributos essenciais da cultura cômica popular e grotesca da Idade Média a fecundar a literatura do Renascimento, é, portanto, razoável nos referirmos, aqui, também a uma fecundação do até então sério território da crítica musical por uma sorte análoga de comicidade. Central à idéia bakhtiniana do riso é também o formidável potencial que lhe é atribuído como revelador de verdades ocultas, profundas, não oficiais ou interditas. Ao discutir a fecundação, durante o Renascimento, da cultura oficial séria e milenar pelo riso popular da Idade Média que lhe fora até então estranho, Bakhtin sublinha a ligação intrínseca daquele riso “às idéias mais avançadas da época, ao saber humanista e à alta técnica literária”. Pouco adiante, refere-se a Rabelais como “um homem que […] conhecia intimamente todos os problemas e segredos da alta política internacional de seu tempo” (BAKHTIN, p. 62). Tal concepção da compreensão privilegiada de Rabelais acerca da cultura renascentista, conforme refletida em sua obra literária, é, também, perfeitamente análoga ao enfoque adotado por Shaw em relação ao contexto vitoriano – o paralelo tornando-se, nesta caso, particularmente evidente principalmente se forem levados em conta, por exemplo, o hábil manejo pelo último do potencial revelador do riso associado a ideais socialmente progressistas, bem como sua aderência, explícita ou não, à idéia de que toda crítica virtuosa esteja necessariamente amparada em sólidos conhecimentos econômicos, como veremos adiante. Adiante, Bakhtin também se refere ao fato de que, à época do Renascimento, “era absolutamente necessário estar armado do riso não-oficial para aproximar-se do povo que desconfiava de tudo o que era sério, que tinha o hábito de estabelecer parentesco entre a verdade livre e sem véus e o riso.” (BAKHTIN, P. 87) Já no contexto de Shaw verifica-se uma relação entre o riso e a credibilidade curiosamente inversa àquela identificada por Bakhtin na cultura do século XVI, posto que Shaw alude, por mais de uma vez em suas crônicas, a circunstâncias em que sua autoridade teria sido (posto não dispormos, como já dissemos, de meios para determinar a existência autêntica ou fictícia dos seus interlocutores aos quais se refere) posta em cheque, supostamente devido, em parte, a seu tom eminentemente jocoso. Outro aspecto análogo entre as obras aqui referenciadas de Shaw e Bakhtin emerge quando as consideramos numa perspectiva segundo, de um lado, suas vocações originais, i.e., os motivos primários pelos quais foram explicitamente criadas, e, de outro, o que vieram efetivamente a representar, em virtude de seu alcance intelectual, para seus respectivos domínios de conhecimento. Sob este prisma, temos que, tanto uma quanto a outra, ao transbordaram seus gêneros discursivos originais enquanto crítica musical ou literária, se configuram efetivamente como filosofias da música e da linguagem. Finalmente, também comum aos olhares lançados por Bakhtin e Shaw sobre os contextos, respectivamente, renascentista e vitoriano é a preocupação de ambos com a observação de seus objetos de estudo – as culturas cômica e musical – em seus respectivos contextos segundo perspectivas eminentemente históricas. Deparamo-nos, assim, com freqüência com tanto um como o outro autor a observarr o comportamento de variáveis isoladas mediante a manipulação de seus contextos. A esta sorte de movimento analítico convencionamos designar por deslocamento. Movimentos de deslocamento são fundamentais à arquitetura de toda situação cômica. Em última análise, toda situação engraçada, capaz de induzir ao riso ou, por assim dizer, ridícula, está associada à percepção súbita e aguda de uma quebra de expectativa da ordem séria e natural das coisas. Rimos quando surpreendidos pelo que está fora de lugar. Apropriando-se magistralmente destes movimentos, aos quais retornaremos num instante, Shaw faz dos mesmos, em suas crônicas, mais do que sua ferramenta principal, uma arma cômica devastadora a serviço de suas lutas. É, desta forma, essencialmente através de comparações entre execuções de uma mesma obra ou pelos mesmos intérpretes levadas a cabo com intervalos de tempo ou em lugares distantes entre si que Shaw logra iluminar a cena vitoriana segundo uma perspectiva histórica. Numa tentativa de obter uma visão panorâmica do variado repertório de gêneros de deslocamento de ponto de observação dos quais Shaw lança mão no intuito de elucidar, comparativamente, os contextos pelos quais transita, enumeramos, abaixo, ilustrativamente, algumas de suas instâncias, consideradas, para fins didático-analíticos, em categorias segundo a natureza dos movimentos de deslocamento de ponto de observação empreendidos. Cobrindo alternadamente de um lado a cena de teatros metropolitanos consagrados à ópera ou à musica sinfônica tais como, respectivamente, Covent Garden ou Albert Hall e, de outro, aquela oferecida às classes populares nos subúrbios, reflete sobre o comportamentos de cada público; as pré-concepções de gestores e empresários artísticos acerca das supostas preferências musicais de cada segmento; a necessidade de novos espaços públicos de concerto e da melhor utilização dos já existentes; os valores praticados para ingresso a espetáculos e honorários artísticos e, de resto, a própria economia subjacente a toda atividade musical. Comparando as condições em que se dá a prática e o aprendizado do canto em Dublin e Londres, Shaw oferece importantes subsídios para compreensão de noções e expectativas associadas a estas modalidades nas duas cidades. Dentre os mais amplos deslocamentos espaciais de ponto de observação empreendidos por Shaw citamos seu testemunho sobre as condições de interpretação e encenação do drama wagneriano no santuário de Bayereuth comparadas àquelas usualmente observadas quando o mesmo repertório é levado em Londres; bem como seu cômico relato da estréia, cercada de pompas e ufanismo nacionalista, de uma ópera absolutamente convencional em Amsterdam, na qual o cronista, a pretexto de prevenir sua desnecessária encenação em solo britânico, termina por também denunciar a mesmice do repertório operístico então predominante em palcos ingleses. A aguçadíssima sensibilidade auditiva e musical de Shaw também lhe permitia identificar claramente diferenças de qualidade entre execuções dos mesmos intérpretes e/ou obras cujo intervalo de tempo entre si variasse de vários anos ao instante seguinte. Ilustram esta faculdade discriminatória superior suas crônicas sobre nuances diferenciais observadas na regência orquestral de Sigfried Wagner, filho de Richard, entre temporadas distintas ou de um dia para outro, bem como durante o transcorrer de uma recita da ópera Aida, de Giuseppe Verdi, ou de um recital de violino e piano. Podemos falar, ainda, de um terceiro gênero de deslocamento que se dá entre distintos referenciais estéticos, exemplificado, na obra crítica de Shaw, por sua aguda apreciação da interpretação da música de Mozart associada à condição de estranheza do público londrino perante a mesma. Admirador incondicional da obra de Wolfgang Amadeus Mozart, Shaw viu nos festejos pelo centenário de sua morte o ensejo perfeito para lançar-se numa cruzada pela restauração ou, melhor dizendo, instauração do prestígio do compositor cuja impopularidade entre seus conterrâneos imputava, por sua vez, às condições usualmente precárias de interpretação de sua música naquele contexto mediante uma transposição equivocada de referenciais estéticos e estilísticos peculiares à execução da música do período romântico (século XIX tardio) para aquela do período clássico (final do século XVIII e início do XIX). Além disso, tomou emprestado a seus heróis Mozart e Wagner temas “literários” utilizados na composição de sua própria obra dramática e política, tais como na livre apropriação de personagens do libretto de Dal Ponte para a ópera Don Giovanni de Mozart para seu drama Man and Superman, “at once a modern comedy and a ‘philosophy’” (GANZ, 1996), ou, ainda, em seu ensaio The Perfect Wagneryte, uma “interpretação Marxista-socialista d’O Anel dos Nibelungos, de Wagner” (SCHMIDGAL, 1998) Segundo esta perspectiva, talvez um dos mais significativos movimentos de deslocamento empreendidos por Shaw tenha sido em relação à sua própria obra crítica quando, no prefácio de 1935 à edição de 1937 de suas crônicas, adverte “I reprint Bassetto’s stuff shamefacedly after long hesitation with a reluctance which has been overcome only by my wife, who has found some amusement in reading it through, a drudgery which I could not bring myself to undertake. I know it was grat fun when it was fresh, and that many people have a curious antiquarian taste (I have it myself) for old chronicles of dead musicians and actors. I must warn them, however, not to expect to find here the work of the finished critic who wrote my volumes entitled Music in London, 1890-94, and Our Theatres in the Nineties. I knew all that was necessary about music; but in criticism I was a beginner. […] I am no longer Corno di Bassetto. He was pré- and pro- Wagner; unfamiliar with Brahms;… As to Cyril Scott, Bax, Ireland, Goossens, Bliss, Walton, Schönberg, Hindemith, or even Richard Strauss and Sibelius, their idioms would have been quite outside Bassetto’s conceptions of music, tough today they seem natural enough. Therefore I very greatly doubt whether poor old Bassetto is worth reading now. Still, you are not compelled to read him. Having read the preface you can shut the book and give it to your worst enemy as a birthday present. MID-ATLANTIC, Sunday, 2nd June 1935“ Ou ainda em sua infeliz apreciação da música de Brahms, contemporânea a sua composição, publicada em sua coluna de 12 de dezembro de 1888: “Brahms’s music is at bottom only a prodigiously elaborated compound of incoherent reminiscences, and it is quite possible for a young lady with one of those wonderful “techniques”, which are freely manufactured at Leipzig and other places to struggle with his music for an hour at a stretch without giving such insight of her higher powers as half a dozen bars of a sonata by Mozart “; da qual assim se retrataria 47 anos mais tarde: “(The above hasty (not to say silly) description of Brahms’s music will, I hope, be a warning to critics who know too much. In every composer’s work there are passages that are part of the common stock of music of the time; and when a new genius arises, and his idiom is still unfamiliar and therefore even disagreable, it is easy for a critic who knows that stock to recognize its contributions to the new work and fail to take in the original complexion put upon it. Beethoven denounced Weber’s Euryanthe Overture as a string of diminished sevenths. I had not got hold of the idiosyncratic Brahms. I apologize.)” (1936) Em todas as instâncias acima, foram precisamente os deslocamentos de ponto de vista em relação aos objetos observados que permitiram a Shaw enfocá-los segundo perspectivas eminentemente históricas. * * * Se o que vimos até aqui já fosse suficiente para que nos sentíssemos inclinados, ainda que sem o devido exame cuidadoso de obras congêneres de seus predecessores e contemporâneos, a reconhecer em Shaw o virtual inventor da crítica musical enquanto gênero discursivo assim como hoje é conhecido, não resta dúvida alguma, todavia, sobre sua incontestável de melhor crítico de sua época, bem como a de ter sido, muito provavelmente, o primeiro a teorizar sobre o exercício da crítica musical enquanto ofício. Em seu ensaio How to become a Music Critic (SHAW, 1894), Shaw reconhece como atributos indispensáveis a um bom crítico um gosto cultivado pela música, alguma habilidade literária e experiência crítica. Ilustrando, refere-se ironicamente às duas vantagens supostamente auferidas pelo crítico incompetente em se tratando de evadir-se de situações que venham a colocar em cheque sua autoridade sobre matérias musicais: “A critic who does not know his business has two advantages. First, if he writes for a daily paper he can evade the point, and yet make himself useful and interesting by collecting the latest news about forthcoming events and the most amusing scandal about past ones. Second, his incompetence can be proved only by comparing his notice of a month ago with his notice of today, which nobody will take the trouble to do.“ (SHAW, 1894) Adiante no mesmo ensaio, destaca a importância, à qual aludimos anteriormente, de que o crítico também possua conhecimentos econômicos suficientes para distinguir em que extensão indivíduos ou contextos devem ser responsabilizados por malfeitorias musicais: “I was enormously helped as a critic by my economical studies and my political practice, which gave me an invaluable comprehension of the commercial conditions to which art is subject. I is an important part of a critic’s business to agitate for reforms; and unless he knows shat the reforms will cost, and weather they are worth that cost, and who will pay the Bill, and a dozen other cognate matters not usually included in treatises of harmony, he will not make any effective impression on the people with whom the initiative rests – indeed he will not know who they are. Even his artistic veredicts will often be aimed at the wrong person. A manager or an artist cannot be judged fairly by any critic who does not understand the economic bearings of profits and salaries. It is one thing to set up an ideal of perfection and complain as long as it is not reached; but to blame individuals for not reaching it when it is economically unattainable, instead of blaming the conditions which make it unattainable; or to blame the wrong person – for instance, to blame the artist when the fault is the manager’s, or the manager when the fault is the public’s – is to destroy half your influence as a critic.“ (SHAW, 1894) Sublinhe-se, de resto, na passagem acima, a menção ao imperativo da consideração dos objetos de estudo em perspectiva em relação aos contextos nos quais se insiram como requisito fundamental a crítica musical virtuosa, de ordem universal e permanente, em oposição a uma outra, de interesse local e efêmero, cuja vigência jamais ultrapassa o período de existência dos objetos artísticos em questão, como bem salienta o editor de The Musical Quarterly ao afirmar, em sua introdução ao artigo de William Irvine, que “Journalistic criticism is, by nature, ephemeral; if it survives it becomes literature.” (IRVINE, 1946) * * * Tendo até aqui nos dedicado à identificação dos atributos responsáveis pela permanência da genial e singular prosa crítica musical de Bernard Shaw, bem como à qualificação da natureza privilegiada de seu olhar sobre a cena musical da era vitoriana; resta, pois, consoante à primeira enunciação de nossos propósitos, procedermos à explicitação das razões pelas quais também entendemos esta literatura como de fundamental relevância para estudos atuais no campo de conhecimento da música. Antes, porém, de nos lançarmos ao encalço de respostas satisfatórias às questões inicialmente formuladas, é interessante comparar os conjuntos de respostas devolvidas por um engenho de busca na internet para duas pesquisas que cruzavam, respectivamente, as expressões inglesas Bernard Shaw musical criticism e seus equivalentes em língua portuguesa crítica musical Bernard Shaw, na expectativa de que o contraste entre ambos os conjuntos de resultados seja capaz de informar quanto à importância relativa do corpo de conhecimento acerca da literatura crítica musical shaviana para as culturas de ambos os idiomas. Assim procedendo, imediatamente constata-se, mediante o exame do conjunto de resultados da primeira consulta, além de numerosos anúncios das várias antologias abrangentes de suas crônicas editadas até hoje, também uma farta literatura acerca de sua obra existente em periódicos literários e/ou páginas da web, dentre os quais destacamos The Annual of Shaw Studies, publicado pela Penn State University, Shaw Magazine, vinculado ao Shaw Festival de Ontário e The Independent Shavian, da The Bernard Shaw Society, extensa bibliografia de literatura sobre os textos musicais de Shaw (http://chuma.cas.usf.edu/~dietrich/Shaw-and-Music.htm) hospedada pela University of South Florida, sede da International Shaw Society, súmula de uma disciplina de crítica musical da Julliard School of Music, de Nova Iorque, além de várias obras sobre Shaw publicadas pelas University Press of Florida e pela Toronto University Press. Ora, tais informações denotam, em seu conjunto, a intensa atividade acadêmica dedicada à literatura crítica musical shaviana enquanto campo de conhecimento em países de língua inglesa. Já o conjunto de resultados da segunda consulta, com expressões em português, apontam exclusivamente para recortes de dissertações acadêmicas sobre crítica, diversidade e jornalismo cultural; colunas de críticos musicais experientes tais como Paulo Francis, João Marcos Coelho e Rogério Cerqueira Leite; blogs de conteúdo estético, crítico ou literário e referências jornalísticas a uma recente realização do musical My Fair Lady, adaptado a partir da comédia Pigmalião, de Bernard Shaw, produzida em São Paulo; evidenciando, em seu conjunto, uma escassez de fontes acadêmicas a contrastar com a grande diversidade de textos e fontes literários, jornalísticos e de opinião – a sugerir, deste modo, a existência de um campo de interesse na cultura de língua portuguesa pela crítica musical de Shaw, não obstante sua relevância estética e atualidade crítica, não mais que disperso e restrito a círculos especializados. Em decorrência desta constatação, a saber, a de que as concepções universais e a ideologia progressista de George Bernard Shaw a respeito da música sejam, conquanto internacionalmente reconhecidas como relevantes para contextos atuais, ainda praticamente estranhas a currículos acadêmicos brasileiros, é que concluímos, aqui, por recomendar enfaticamente tanto sua inclusão em currículos de estudos musicais como a ampla difusão de seu acesso a contextos músico-culturais que operem ou estejam de alguma maneira associados à faculdade de apreciação musical. * * * As idéias amalgamadas neste ensaio me ocorreram ao longo de um amplo intervalo temporal, desde que, ao garimpar rotineiramente um formidável sebo de Nova Iorque em 1989, por um capricho do destino me caiu às mãos um surrado volume de bolso, encadernado em tela vermelha, em cuja lombada se lia, impresso em dourado, LONDON MUSIC from 1888 to 1890, as heard by Corno di Basseto, em cuja leitura mergulhei avidamente desde então, relendo-o frequentemente de cima a baixo, de trás para a frente, transversalmente e ao avesso, a largos intervalos entre os diversos períodos em que o volume residiu em bibliotecas de amigos ao longo dos últimos vinte anos. Neste ínterim, quanto mais evoluíam minhas percepção e compreensão musicais, tanto mais me surpreendia, a cada releitura daquele texto fascinante, não apenas com suas indiscutíveis virtudes musicais e literárias mas, sobretudo, sua grande vitalidade atual, não obstante as dramáticas mudanças que afetaram os contextos de criação, execução, produção, distribuição e audição musicais nos últimos 120 anos, desde que as espirituosas crônicas de Corno de Bassetto deram—se pela primeira vez ao conhecimento público, e especialmente numa época notavelmente carente de boas referências críticas e estéticas. Dentre os motivos que me impeliram ao exercício de tentar amalgamá-las num todo legível, identifico, de pronto, três motivos, a saber, a necessidade, a partir de fevereiro de 2009, quando de meu engajamento, como co-autor da disciplina Tópicos Especiais em Música, no corpo docente do curso a distância Pró-Licenciatura em Música da UFRGS, de disponibilizar virtualmente uma referência de apoio, até então inexistente em língua portuguesa, a módulos de atividades consistindo na tradução coletiva e assíncrona, em ambiente virtual de aprendizagem, de textos estrangeiros relevantes ao ensino musical ainda não traduzidos, dentre os quais fragmentos da crítica musical de Bernard Shaw; tal é a razão de todas as citações do discurso de Shaw preservarem, neste ensaio, sua redação original em inglês – reservando-se, com isto, o prazer e o privilégio de sua primeira tradução aos próprios alunos da disciplina, o exercício acadêmico de redação de um artigo proposto ao final de uma disciplina constituída como um grupo de leitura dirigida da obra Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento – O Contexto de Rabelais, de Mikhail Bakhtin, ministrada pela Profª Drª Margarete Axt junto ao Programa de Pós-Graduação em Informática na Educação da UFRGS o desejo e a possibilidade, um tanto românticos, de despertar em leitores comuns, leigos ou amadores, sem nenhuma linha de pesquisa, interesse profissional ou qualquer sorte de vínculo especializado com a música mas que, efetivamente, gostem de música, uma centelha de interesse pela genial prosa da qual aqui nos ocupamos. Devo aqui confessar que, assim como a prosa musical shaviana talvez jamais tivesse visto a luz do mundo não fosse o temor de eminente desemprego vivenciado por seu autor, provavelmente eu nunca tivesse redigido estas linhas sem os imperativos das primeiras duas razões acima, exclusivamente por força da terceira. Não obstante fosse, todavia, a segunda delas por si só suficiente para que eu almejasse à primeira publicação do ensaio nalgum periódico acadêmico-científico, conspiraram as restantes para que eu quisesse dá-lo antes ao conhecimento através de uma mídia online – conquanto, seja dito, que volumes recentes dos melhores periódicos sejam há muito publicados simultaneamente desta forma – freqüentada ao mesmo tempo tanto por estudiosos como por leitores laicos, i.e., aqueles não pertencentes exclusivamente a círculos científicos ou especializados; que não petrificasse o texto numa versão imutável e acabada, sem recurso a qualquer edição ou revisão, após sua publicação; que fosse favorável, através de meios tais como postagem de comentários, ao debate e interação entre leitores e autores; que suportasse a implementação de uma dinâmica referencial ágil e interativa, vantajosa em relação às desajeitadas notas finais e de rodapé, através de hyperlinks; mas, principalmente, que concedesse um certo grau de licença literária a mais do que os sérios paradigmas formais e estilísticos do campo da comunicação científica. 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London Music in 1888-89 as heard by Corno di Bassetto (later known as Bernard Shaw) with som further Autobiographical Particulars. Constable, London, 1937. SHAW, George Bernard. How to Become a Music Critic, Scottish Music Monthly, Dezembro de 1894; New Music Review, Outubro de 1912; Bernard Shaw, How to become a Music Critic, ed. Dan H. Laurence, Rupert Hart-Davis, Londres, 1960, pp. 1-6. TORRES, Sérgio Rubens de Araújo. A pirataria de CDs e o flagelo do “jabá”. Multis boicotam a produção musical brasileira para favorecer a da matriz. A Hora do Povo, 23 de julho de 2004. Multis usam jabá para censurar a produção musical brasileira. A Hora do Povo, 16 de julho de 2004. Referências online Uma extensa bibliografia de literatura sobre a crítica musical de Bernard Shaw encontra-se disponível em http://chuma.cas.usf.edu/~dietrich/Shaw-and-Music.htm.