Demografia By José Eustáquio Diniz Alves / Share 0 Tweet O rio São Francisco está pedindo socorro, mas ao invés de um projeto de recuperação e revitalização, a única grande obra do governo visa apenas sugar mais água do leito, por meio da transposição. O rio São Francisco foi fundamental para o desenvolvimento do Brasil e já está passando da hora de o país restituir, pelo menos em parte, o tanto que ele deu à nação. Pelos livros de geografia sabemos que o Rio São Francisco tem 2,7 mil quilômetros de extensão, corta 5 estados Brasileiros (MG, BA, PE, AL e SE) e sua bacia abarca 500 municípios, com uma população aproximada de 15 milhões de habitantes. Mas pouco é divulgado sobre o estado de degradação por que tem passado esta bela obra da natureza e que tem milhões de anos de vida. Da minha parte, só tenho boas lembranças do rio e dos seus afluentes. Nasci em Belo Horizonte e cresci me banhando na bacia do rio São Francisco. Desde criança aprendi a admirar as belezas das montanhas, das cachoeiras e da flora e fauna da região. Frequentei muito as cachoeiras de Brumadinho, Raposos, Sabará, Rio Acima, Itabirito e, principalmente, da Serra do Cipó e da Serra do Caraça. Como morei em Nova Lima, nas margens do ribeirão do Mutuca, conheci quase todas as cachoeiras da cidade, inclusive aquelas do distrito de São Sebastião de Águas Claras (Macacos, com sua igreja de 1718). Também trabalhei na UFOP e morei em Ouro Preto e conheci em profundidade a cachoeira das Andorinhas e as diversas nascentes do rio das Velhas – principal afluente do rio São Francisco. Além disto tenho amigos em Ouro Branco e Congonhas e cheguei a conhecer as nascentes do rio Paraopeba, outro importante afluente do Velho Chico. Esta região montanhosa do quadrilátero ferrífero – onde brotam milhares de nascentes – começou a ser explorada há 300 anos, com a mineração do ouro, diamante e outros minerais. A vegetação nativa original foi praticamente destruída, pois a mineração deixou erosão e destruição dos solos e das fontes límpidas de água. Adicionalmente, o cultivo de alimentos, a criação de gado e a retirada de lenha ajudou a mudar o cenário natural da região, desmatando e danificando as nascentes dos principais afluentes do rio São Francisco. Nesta área, há uma forte presença de grandes mineradoras e diversas usinas, destacando-se uma grande fábrica de alumínio em Ouro Preto e uma grande siderúrgica em Ouro Branco. Nestas cidades também há grandes carências de redes de esgoto e de coleta de lixo. Além das águas contaminadas pela lavagem de minério e dos efluentes industriais, oficinas mecânicas jogam graxa e óleo no leito dos rios que recebem também os esgotos urbanos, carcaças de animais mortos e resíduos sólidos do campo e da cidade. A erosão dos rios, o assoreamento e a poluição são evidentes a olho nu. Em Nova Lima, além das minerações, os condomínios de luxo e os clubes de lazer destroem a vegetação nativa e sugam as nascentes d’água, para consumo, os jardins e as piscinas. O Ribeirão Arrudas, que já foi o principal rio de Belo Horizonte, agora é um esgoto a céu aberto levando suas sujeitas para o rio das Velhas. Esta é a realidade que conheci e vivenciei desde criança. Mas faltava conhecer as nascentes do Rio São Francisco na Serra da Canastra, no sudoeste de Minas Gerais. Finalmente em 2012 – ano que, de acordo com interpretações do calendário Maia, o mundo pode acabar – fui visitar esta região igualmente bonita e cheia de história. Fui antes que o mundo e/ou o rio acabem. Cheguei ao Parque Nacional da Serra da Canastra pelo município de São Roque de Minas. O Parque foi criado em 1972 com o objetivo de proteger uma área de 200 mil hectares, mas somente 71.525 hectares estão demarcados, se restringindo às áreas acima de 900 metros dos maciços da Serra da Canastra (nome derivado da forma de baú ou canastra das rochas mais altas) e a Serra das Sete Voltas. Estes maciços dividem as bacias dos rios São Francisco e do rio Paraná. O alto das Serras possui vistas panorâmicas deslumbrantes, com centenas de cachoeiras e uma vegetação que varia de campos rupestres, áreas de cerrado e matas ciliares. Com sorte e em horários adequados é possível observar animais selvagens, como tamanduá-bandeira, tatu-canastra, lobo-guará, veado-campeiro, onça, ema, carcará, etc. Mas, atualmente, os animais selvagens estão confinados às áreas do Parque, pois as cercas de arame farpado, os cachorros e as armas de fogo das fazendas impossibilitam a livre mobilidade daquelas espécies que já foram donas da região. As condições naturais das nascentes da Serra da Canastra e arredores já foram muito alteradas (para pior). Em primeiro lugar, esta região pertencia aos índios Cataguases, que tinham fama de ferozes, mas foram dizimados pelo colonizadores portugueses, ainda no século XVIII, nos primórdios da ocupação da Capitania de Minas. Depois de eliminar os índios, diversos quilombos que se estabeleceram na região, foram igualmente eliminados. A mineração e o garimpo provocaram muitos danos no passado. Mesmo com o maior controle atual, os impactos negativos das exploração mineral não são desprezíveis. A vegetação natural foi largamente substituida pelas plantações de café e pelas pastagens de gado (que tem possibilitado, além do desmatamento, a produção do famoso queijo canastra). Evidentemente, a pecuária e as plantações de café, milho e até cana tiram água do rio e devolvem na forma de poluição e de agrotóxicos, com grande impacto ambiental. O nitrogênio encontrado nos fertilizantes quando chega ao rio, em grande quantidade, provoca zonas mortas e redução da biodiversidade. A introdução de espécies invasoras, como o capim gordura, a braquiária e outras gramíneas, contribuem para a destruição da rica flora da região. O Parque Nacional da Serra da Canastra sofre periodicamente com as queimadas e toda a região sofre com a perda das riquezas naturais e a agressão à flora e fauna provocada pelas atividades antrópicas. A principal nascente do rio São Francisco brota no chapadão da Serra da Canastra e corre lentamente através de um relevo sinuoso até sua primeira queda na cascata Casca d’Anta (de cima), onde as águas começam a descida a uma altura de 340 metros até atingir a beira do paredão onde cai de um vão livre de 186 metros na cachoeira Casca d’Anta (de baixo). Até o lago (de cerca de 30 metros de profundidade) formado no fim destas primeiras cachoeiras, as águas são limpas e transparentes e se pode beber diretamente do rio. Mas o quadro muda de figura quando chega a civilização com a agricultura petroficada, a pecuária e as cidades (com seus lixos, resíduos e esgotos). A cidade de São Roque de Minas (com 6.686 habitantes e 2.283 domicílios), onde fica a principal nascente do rio São Francisco, é um município que conta com diversas transferências federais (inclusive royalties das hidrelétricas) mas possui 10% do domicílios urbanos sem saneamento adequado, segundo dados do censo 2010, do IBGE. O quadro de falta de saneamento se agrava ao longo dos 500 municípios rio acima. No conjunto, o rio São Francisco está sofrendo com o assoreamento, o desmate das matas ciliares, a erosão, o sobre uso das águas, os represamentos, a poluição dos esgotos e dos efluentes industriais, a contaminação de metais pesados e os agrotóxicos. A pesca predatória agrava a ameaça de extinção de peixes como o Surubin, o Dourado e outros peixes de piracema. A migração entre locais de alimentação e de reprodução é impedida pelas barragens hidrelétricas que são um dos principais obstáculos para a reprodução destes peixes. O surubim já foi, em outras épocas, sinônimo de peixe do Rio São Francisco. Esta espécie é considerada, (pelos não vegetarianos) a mais nobre pelo sabor da carne, pela falta de espinhos pequenos e por facilitar o consumo até das pessoas que não costumam comer peixe com frequência. Este símbolo do rio da integração nacional é hoje uma raridade até mesmo em Pirapora (MG). Por tudo isto, a situação do Rio São Francisco é desesperadora e piora à medida que crescem a população e a economia brasileira e mundial. Quanto maior é a demanda global por comida e commodities, maior é o sofrimento do rio e de seu entorno. Nos últimos anos, já se foram billhões de reais para a transposição das águas do rio São Francisco e apenas uma fração destes recursos foi utilizada na revitalização. O projeto de transposição, além de estar atrasado, vai sair mais caro do que o previsto. Sob o atual governo, os custos de transposição da água doce já ficaram 71% mais salgados. O empreendimento amplamente questionável do ponto de vista ambiental estava orçado em R$ 4,8 bilhões. Hoje, trabalha-se com a cifra de R$ 8,2 bilhões para uma obra que deve favorecer grandes exportadores de commodities agrícolas e muito pouco aos moradores do semi-árido e do sertão nordestino. Mais uma vez a “industria da seca” canalisa recursos para uma minoria de políticos e empresários enquanto a população fica sem água e apenas com as caras e petroficadas cisternas de plástico. Com um orçamento de R$ 8,2 bilhões se poderiam demarcar os 129 mil hectares (ha) do Parque Nacional da Serra da Canastra que faltam para completar os 200 mil ha do plano original, recuperar a Área de Proteção Ambiental da Cachoeira das Andorinhas, em Ouro Preto, e investir em saneamento básico e tratamento do esgoto nas 500 cidades da bacia do rio São Francisco. Mas ao invés disto, a degradação do rio continua. O oxigênio está sendo reduzido pelo menor fluxo das águas e o maior influxo de poluição. As algas azuis (cianobactérias) transformam as águas em veneno, impróprias para consumo animal (inclusive dos humanos), além de provocar extensa mortandade de peixes. Mas toda exploração tem limites e um dia a água seca ou deixa de ser apropriada para o consumo. O rio São Francisco está ameaçado em seu fluxo natural de vida e não somente enquanto insumo para a vida humana. Muito já foi escrito sobre as populações ribeirinhas e sobre a perda de atividades econômicas das cidades que vivem à beira do rio São Francisco e sofrem com a sua degradação. Indubitavelmente, a questão social é super importante e deve merecer a devida atenção da sociedade e das autoridades governamentais. Mas antes de tudo é preciso defender o rio pelo seu valor intrinsico e pela biodiversidade que ele comporta e transporta. As populações que vivem ao redor do rio, em última instância, podem migrar, mas o próprio rio, os peixes, as plantas e as aves endêmicas não podem se deslocar. A água deveria ter o direito de ser limpa e livre. O rio deveria ter o direito de continuar limpo e livre. As espécies deveriam ter o direito à uma vida sã e livre. Para se aproximar destes princípios, o Velho Chico precisa mais do que nunca da atenção geral, para evitar que o rio da “integração nacional”, com toda a sua rica biodiversidade, sucumba em decorrência da ação humana e se transforme em um símbolo da vergonha da civilização nacional. Recomendação de leituras:Projeto Manuelzão: http://www.manuelzao.ufmg.br/Meu Velho Chico: http://meuvelhochico.blogspot.com