Demografia By José Eustáquio Diniz Alves / Share 0 Tweet A família brasileira, felizmente, tem passado por uma grande transformação no último século. Houve uma grande redução das desigualdades de gênero e geração e uma diminuição do poder patriarcal sobre mulheres e filhos. Segundo o escritor Paulo Prado, no livro "Retrato do Brasil: ensaio sobre a tristeza brasileira", a família patriarcal do Brasil colonial, de perfil melancólico, pode ser caracterizada na seguinte frase, que dá titulo a este artigo: "Pai soturno, mulher submissa, filhos aterrados". Em Casa Grande & Senzala, Gilberto Freyre apresenta uma descrição da família patriarcal colonial brasileira, sendo uma instituição chefiada por um patriarca que detém poder sobre seus filhos e esposa e também sobre parentes, agregados e escravos, constituindo uma família extensa e hierarquicamente dominada pelo homem – pai/marido. Evidentemente, um retrato panorâmico da família não dá conta da diversidade existente em todos os setores da sociedade e nem é capaz de indicar arranjos familiares alternativos que ainda não tinham a visibilidade e a representatividade das formas hegemônicas. Contudo, é inegável que os homens brasileiros – chefes de família – exerciam, em diversos graus, um poder indiscriminado sobre suas esposas e filhos, configurando relações assimétricas de gênero e geração. Ao longo da história, não só no Brasil, sempre predominou uma estrutura familiar dominada pelo poder patriarcal – do marido e/ou do pai – isto é, do cônjuge homem. Como mostrou Goran Therborn, durante o século XX, houve uma transformação dos três conjuntos de processos que configuram a instituição familiar: a relação dos direitos e poderes de pais e maridos, ou seja, do patriarcado, as vicissitudes do casamento e da parceria sexual e a trajetória transformada da fecundidade. A revolução sexual, as parcerias informais, a regulação da fecundidade e formas menos patriarcais de relacionamento familiar cresceram em dimensões sem precedentes: “A história do patriarcado no século XX é basicamente a de um declínio gradual, começando em diferentes pontos no tempo pelo mundo. A primeira ruptura ocorreu nos anos 1910, mediante ampla reforma consensual na Escandinávia e violenta revolução na Rússia. O final dos anos 1940 e o início dos anos 1950 proporcionaram outro importante degrau para baixo, nessa época centrado no Leste Asiático – no Japão, sob ocupação americana, e na China por meio da Revolução Comunista. A tomada comunista da Europa Oriental significou que os sinos lá também dobraram pelo patriarcado institucionalizado. Sem ser implementada em curto prazo, a Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU assinalou importante vitória global e constitucional contra o patriarcado. Finalmente, os anos que se seguiram a ‘1968’, em particular os anos por volta de 1975 (Ano Internacional da Mulher), provocaram uma onda mundial contra os poderes e privilégios especiais de pais e maridos, com as primeiras rupturas vindas da Europa Ocidental e da América do Norte, mas sem deixar nenhuma parte do planeta intocada” (Therborn, Sexo e Poder, Contexto, 2006, p. 430). O poder masculino sobre a esposa e filhos, no Brasil, foi legitimado, por exemplo, pelo Código civil, de 1916, que – inspirado no Direito Romano – identificava o status civil da mulher casada ao dos menores, silvícolas e alienados, tornando as esposas civilmente incapazes. Por meio desta legislação limitou-se o acesso das mulheres ao trabalho e à propriedade. Nesta época as mulheres brasileiras também não tinham direito de voto. Legalmente, a esposa só deixou de ser tutelada pelo marido com a promulgação da Lei n. 4.121, de 1962, conhecida com o Estatuto da Mulher Casada. Mesmo assim, a Lei do divórcio só foi aprovada em 1977. O “Pátrio poder” (o poder do homem) na família só foi revogado com a Constituição, de 1988, que em seu artigo 226 estabelece a paridade de direitos e deveres entre cônjuges e, de ambos, em relação aos filhos. O novo Código Civil brasileiro, afinado com a Constituição, só entrou em vigor em janeiro de 2003. Na maior parte do século XX, a legislação brasileira referendava os chamados filhos ilegítimos que eram classificados como: naturais, espúrios, adulterinos e incestuosos. Somente com a Constituição é que todos os filhos – consangüíneos ou adotivos – passam efetivamente a ter os mesmos direitos. Da mesma forma, foram reconhecidas as uniões estáveis como uma forma de família, independentemente do casamento, e reconhecidos os direitos da chamada “concubina” e dos filhos desta união. O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), de 1990, garantiu uma série de direitos para as crianças, embora estes direitos ainda estejam longe de ser efetivados na prática cotidiana. Vê-se que a legislação mais igualitária de relacionamento de gênero e geração dentro da família ocorreu de maneira gradual ao longo do século XX. Este fato, juntamente com as transformações estruturais e institucionais ocorridas na sociedade brasileira fez com que houvesse uma queda generalizada das taxas de fecundidade. O número médio de filhos das famílias teve uma grande redução nas últimas décadas. Na medida em que as mulheres foram conquistando avanços na educação e espaço no mercado de trabalho, o modelo tradicional de família (marido ganha-pão e esposa cuidadora), marcado fortemente por uma rígida divisão sexual do trabalho, foi cedendo lugar a modelos de família com menores desigualdades de gênero e geração, embora uma situação de plena equidade ainda esteja longe de ser alcançada. A antiga forma de organização da família patriarcal brasileira descrita por Paulo Prado, “Pai soturno, mulher submissa, filhos aterrados”, felizmente, vem sendo substituída por uma maior diversificação familiar e por formas mais justas e igualitárias de relacionamento entre homens e mulheres e entre pais e filhos. Mas ainda estamos somente no meio do caminho, pois se as mulheres já não são mais submissas e os filhos não são aterrorizados, falta o homem ter um papel mais importante nas tarefas da reprodução e do cuidado.