Existencianálise By Vanusa Barboza / Share 0 Tweet Um fisioterapeuta pode ficar surpreso em descobrir quão importante o relacionamento humano se torna, quando o que foi aprendido como técnica está sendo colocado em prática. Como acontece em toda terapia, o terapeuta recebe um pouco do relacionamento temporário e especial de dependência, amor, desconfiança e até mesmo ódio que o psicanalista chama de “transferência”. (Winnicott, psicanalista inglês) Um fisioterapeuta pode ficar surpreso em descobrir quão importante o relacionamento humano se torna, quando o que foi aprendido como técnica está sendo colocado em prática. Como acontece em toda terapia, o terapeuta recebe um pouco do relacionamento temporário e especial de dependência, amor, desconfiança e até mesmo ódio que o psicanalista chama de “transferência” (Winnicott, psicanalista inglês1). Ao abordar o corpo por qualquer meio, mas principalmente na forma de contato corpo-a-corpo, o fisioterapeuta está tocando, senão o único, o mais importante acesso do sujeito às suas possibilidades no mundo. A partir do olhar existencianalítico pensamos que o corpo que é, na verdade, um corpo-sujeito, representa muito bem a saga, o drama e mesmo a tragédia de existir. Afinal a pessoa só pode existir por meio do corpo, corpo este distribuído e administrado por todo o corpo social. O fisioterapeuta toca um corpo que tem nome, singular como a história do sujeito e desta forma deve ter em mente que a dimensão humana do organismo (o corpo) é que está sendo trabalhada e cuidada e não uma dimensão pré-existencial, infra-biológica (nos termos do filósofo M. Baktin), fisiológica. O fisiológico quase nada pode dizer de si que não seja já e sempre corpo sofrente, desejante, em gozo (epifania felicitante ou dolorosa). Se o homem é desejo e homem é corpo, então podemos dizer que corpo é desejo, portanto falta, está em constante estresse por viver em relação no e com o mundo. O corpo-sujeito é, portanto, um corpo-para-outro (Sartre)2. Mais que aliviar ou curar suas dores e dificuldades, a pessoa que procura o fisioterapeuta apresenta a corporificação do sofrimento de existir, assistindo seu corpo em um discurso incompreensível para si mesma e espera que o profissional dê nome e sentido a este estado quase que disléxico. A fisioterapia, para ser apenas mais uma variante na tecnologia médica, deveria ser vista como qualquer outro meio para intervir em uma matéria anestesiada, tecidos vivos funcionais, uma técnica de intervenção sobre fibras musculares, líquidos fisiológicos vários, peças e estruturas; técnica inanimada entre técnicas inanimadas. Contudo, o que o fisioterapeuta toca é bastante diferente de um folículo quase inanimado; na verdade seu trabalho se dá sobre, por exemplo, a pele, como a linha de horizonte que une (não separa) o mundo pessoal do mundo social. Uma pele que nos aparece como vivente e não mera cobertura de um objeto. Entretanto, mesmo fazendo essa diferenciação entre meios inanimados e a pele animada (de ânimo, anima, almada), não podemos fugir ao efeito ideológico, lingüístico-histórico, por excelência, de se ter corpo. Se, por exemplo, escolhemos trabalhar com técnicas "frias", ainda assim estamos no terreno da constituição de sentidos; o organismo também sofre interpretação, tanto do fisioterapeuta, quanto de seu paciente. Portanto o contato não se dá com músculos, hérnias, fístulas, coluna e sim com um sentir-se integrado, centrado, posicionado no e com o mundo, um corpo vivo, uma vida viva. A pessoa acredita-se fragmentada já que o médico nomeia sintomas, patologias, órgãos adoecidos; a sociedade nomeia sucesso, fracasso, níveis hierárquicos, deveres e direitos; as religiões uma alma, um corpo, dimensões, vida verdadeira. O paciente acredita que está deslocado do mundo e de si mesmo por não reconhecer-se tentando fazer sentido frente aos outros, lançando mão do próprio corpo, buscando no organismo o fundamento cindido do mundo e não raras vezes não construído. Neste interlúdio entra o fisioterapeuta para acolher-lhe o corpo visto e sentido como fragmentado, deslocado, remetido à situação do ser-em-si pedindo, segundo Winnicott, “que seja observado e espelhado de volta por alguém em quem se confia, justifica a confiança e atende”3, uma maternagem boa o suficiente, proporcionando cuidado e sustentação, conduzindo-o para a busca do ter sentido, para o ser-no-mundo, localizando o paciente como corpo-sujeito e em angústia por não perceber a coerência do próprio sofrimento. É nessa dimensão dos desejos, fantasias e sonhos que este profissional tangencia e mesmo pode mergulhar. Sua responsabilidade está em não aceitar-se como um mero instrumento de trabalho técnico ou como um prestador de serviços para conserto de uma máquina qualquer. Relacionar-se não com organismos mas com corpos vivos, corpos-sujeitos, corpos-para-os-outros. [1] Em sua obra: As explorações psicanalíticas. [2] Em sua obra: O ser e o nada. [3] Também em Winnicott.