Tatuagem, a escrita na pele como “inscrição”

Tatuagem

Tatuagem"A escrita na pele atinge o processo de constituição dos sentidos?"

Com esta pergunta o autor começa uma reflexão sobre a tatuagem. O que é? O que representa para uma pessoa marcar sua pele? Este artigo pretende a investigação sobre o ato de se tatuar, entendido como subjetivo, relacionado a uma busca de sentido pelo indivíduo.

Essa questão finaliza uma profícua reflexão de Eni Orlandi, no ensaio: Á flor da pele: indivíduo e sociedade (2006). “Se [a tatuagem] atinge [o processo de constituição dos sentidos]”, continua a autora, “estamos diante de uma falha no ritual ideológico e temos assim a possibilidade de um furo no modo de individualização do sujeito moderno. Se não, estamos apenas diante de mais uma variável da tecnologia escrita”. Neste trabalho vamos tentar responder a essa interrogação, acompanhando seu raciocínio e desenvolvendo alguns pontos que terão sua possível amarradura dentro do próprio ensaio da autora, bem como em outros textos seus. Recorrerei a Merleau-Ponty para estabelecer um certo ponto de (in)flexão onde me apoio, mesmo que provisoriamente e muito rapidamente, para decidir por aceitar que a escrita na pele é uma inscrição subjetiva, na extensão e profundidade da constituição de sentido.

Tattoo2 Senão, vejamos. A escrita na pele, para ser apenas mais uma variante na tecnologia escrita, deveria ser vista como qualquer outro meio para escrever: a folha de papel, o outdoor, a parede, o filme etc; um meio inanimado entre meios inanimados. Bastante diferentes da pele, que se nos aparece como vivente, não mera cobertura de um objeto. Entretanto, mesmo fazendo essa diferenciação entre meios inanimados e a pele animada (de ânimo, anima, almada), não podemos fugir ao efeito ideológico, lingüístico-histórico, por excelência. Se, por exemplo, escolhemos o papel para escrever, ainda assim estamos no terreno da constituição de sentidos. Não se pode dizer que o termo “mais uma variável da tecnologia” coloca a questão em termos de mera tecnologia, o que não se pode afirmar, uma vez que a própria escolha do meio já é efeito ideológico.

Não à toa McLuhan se posicionou dizendo que “o meio é a mensagem”. Neste ponto, precisamente, devemos dizer que o corpo é a mensagem, antes mesmo da tatuagem. Que sua escolha para inscrição da tatuagem já encerra o trabalho ideológico, o inconsciente, e com isso, a tatuagem (o ato de se deixar tatuar), só significa seus possíveis significados na medida que se dá no corpo. Fora do corpo não há tatuagem; o desenho, antes de ser impregnado na pele, possui vida apenas por empréstimo da imaginação. Imagina-se o desenho na pele, transcendendo-o da pele-papel em direção à pele do corpo-sujeito (um corpo que já é sujeito). Ainda que nos atenhamos ao que a tatuagem significa para aquele que se deixa escrever na pele, e que este porventura não possa avalizar/avaliar em/com seu corpo o que pode significar “tatuagem”, de fato há um discurso que o atravessa, uma ideologia que dispõe de seu corpo, para todos os efeitos. De novo, mesmo que suponhamos a tatuagem como produto fashion, no sentido de moda passageira, ainda assim a tatuagem comunica sentidos, usando um organismo que queremos, sem conseguir, que seja inocente ideológicamente (um corpo apenas biológico). Se “meio” corresponde a “tecnologia escrita”, então a tecnologia escrita, por si mesma, já é interpretação e só de escolher o meio já se constitui sentidos. Então se pode parafrasear McLuhan: A tecnologia escrita é a mensagem. Não havendo uma mera tecnologia escrita tudo que nos resta será, então, admitir que o corpo (a pele) não pode ser suporte tecnológico de uma escrita. Uma vez que se tatua, marca-se o sujeito, mesmo que seja só para expor sua fragmentação de sujeito histórico-ideológico-linguístico de mercado e individualizado pelo Estado (administrador de distribuidor dos corpos). O corpo não pode ser considerado mera tecnologia escrita, assim como não se pode separar meio e mensagem desabando na distinção forma e conteúdo, o que, é só mais uma dicotomia idealista. Escolher o meio em que se produz a escrita, será, sempre, escolher a partir do ideológico, e já esquecido de que seu corpo é veículo da cultura; nessa escolha já constituindo interpretação, e, por conseguinte, constituindo sentidos. O mesmo se dá com a impossibilidade de se separar o discurso de sua circulação ou os saberes das instituições que os sustentam.

Tendo isso à disposição, correndo o risco de ser raso, pelo tamanho da tarefa de decifrar a tatuagem, me faço repisar os rastos deixados por Eni Orlandi em dois textos* referentes à tatuagem e piercing. O primeiro, já citado aqui, e o outro, “Retomando a palavra: um corpo textual?” (2005).

Antes de tudo o mais, algumas palavras: **

Tatuar – pintar ou gravar desenhos no corpo de alguém ou deixar-se tatuar; pôr sinal em; marcar; inserir pigmento sob a pele para obter marca ou figura indelével.

Tatuagem – arte de gravar na pele, por meio de pigmentos coloridos, ícones geralmente indeléveis, que significam forças da natureza, doutrinas etc; sinal; marca; cicatriz.

Totem – animal, planta ou objeto que serve como símbolo sagrado de um grupo social (clã, tribo) e é considerado como seu ancestral ou divindade protetora; representação ou emblema (geralmente entalhado ou pintado) desse animal, planta ou objeto.

Totemismo – crença na existência de parentesco ou de afinidade mística entre um grupo humano ou pessoa em totem; conjunto das práticas e ritos, como tabus alimentares e vocabulares, associadas a uma relação totêmica; sistema de organização social baseado nas afiliações totêmicas.

Amuleto – objeto, fórmula escrita ou figura (medalha, figa etc.) que alguém guarda consigo e a que se atribuem virtudes sobrenaturais de defesa contra desgraças, doenças, feitiços, malefícios etc.; remédio supersticioso que preservava contra feitiços, venenos; preservativo, talismã.

Talismã
– objeto a que é atribuído um poder mágico efetivo fora do comum; encantamento; objeto mágico; rito religioso; sortilégio.

Em primeiro olhar, penso que a tatuagem visa marcar delevelmente a pertença a um grupo, fazendo o corpo mesmo funcionar como um totem, tanto no sentido de reconhecimento a um certo segmento de sociedade, quanto no sentido de marcar limites, como defendendo a subjetividade contra ataques da realidade. O corpo funciona como totem e amuleto ao mesmo tempo! Dito de modo mais preciso ainda, o tatuado totemiza-se, demarcando seus limites, mas também “sendo” e veiculando sua mensagem. A demarcação é feita também de fora para dentro: o tatuado espera ser reconhecido, mas também respeitado, temido, pois suas marcas são uma espécie de sortilégio contra o sem-sentido e o aleatório. A aventura do sinal marcado na pele tem a ver com a domesticação do sentido, por meio de uma linguagem cifrada onde os sujeitos “inscrevem a escrita” (Orlandi, 2005) tornando o próprio corpo um totem – um emblema de si mesmo.

Tattoo É uma trama engenhosamente tecida entre fazer o próprio corpo funcionar como um protetor do indivíduo, mas também de o próprio eu ser protegido por si mesmo. Talvez isso seja melhor dito se consideramos as observações de Merleau-Ponty quanto a natureza de um certo corpo-sujeito. Segundo Merleau-Ponty, o corpo não é um objeto, uma coisa. “Quer se trate do corpo de outrem, quer se trate do meu, não tenho outro modo de conhecer o corpo humano senão vivendo-o, isto é, assumindo por minha conta o drama que me atravessa e confundindo-me com ele”. Essa fusão entre corpo e sujeito desfaz a idéia de pensar o corpo (“pensamento do corpo”) ou com “a idéia do corpo” que erigimos a partir do pensamento de que há uma distinção entre o sujeito e o objeto. Essa experiência nos revela um modo de existência “ambíguo”: se nos aplicamos a entender o corpo como uma seriação de acontecimentos em terceira pessoa (por exemplo, como “visão”, “mobilidade”, “sexualidade”) acabaremos por vivenciar a desconcertante experiência de que essas funções não estão ligadas entre si e com o mundo externo por uma relação de causalidade, mas estão todas fundidas e confundidas num único drama. O autor buscou um tratamento correto da natureza da percepção do corpo, e do lugar dos corpos na percepção de outras coisas. Nesta perspectiva, o corpo-sujeito é definido como um conjunto de significações vividas, e não como uma realidade material no sentido estrito; a percepção do corpo e através do corpo não é uma recepção passiva da experiência a partir de um ponto de vista “interior” à cabeça, mas uma síntese ativa e viva do movimento e da consciência do espaço: “a experiência do nosso próprio corpo é contrária ao processo reflexivo que separa o sujeito e o objeto”. […] “Sistema de potências motoras ou de potências perceptivas, nosso corpo não é objeto para um ‘eu penso’: é um conjunto de significações vividas que vai na direção de seu equilíbrio.”

O corpo é considerado, então, como uma forma de experiência ou modo de ser vivido, com caráter específico junto a outros modos de ser. Já Husserl acentuava que o corpo é experiência que se isola ou individua depois de sucessivos atos de redução fenomenológica. “Na esfera do que me pertence (da qual se eliminou tudo o que remete a uma subjetividade alheia), o que chamamos natureza pura e simples não possui mais o caráter de ser objetivo e, portanto, não deve ser confundido com um extrato abstraído do próprio mundo ou do seu significado imanente. Entre os corpos dessa natureza reduzida à ‘o que me pertence’, encontro meu próprio corpo, que se distingue de todos os outros por uma particularidade única: é o único corpo que não é somente um corpo, mas o meu corpo; é o único corpo, no interior do extrato abstraído, recortado por mim no mundo ao qual, de acordo com a experiência, eu coordeno campos de sensação de modos diferentes; é o único corpo de que disponho de modo imediato, assim como disponho de seus órgãos” (Meditações cartesianas, § 44). Desse modo, o corpo é considerado experiência viva, vinculado a possibilidades humanas bem determinadas. Nessa visada, o corpo não é senão um comportamento, elemento ou uma condição do comportamento humano. Concepção afim é a doutrina de Sartre, segundo a qual o corpo é a experiência do que é “ultrapassado” e “passado”. “Em cada projeto do Para-si [isto é, da consciência], em cada percepção, o corpo está lá: ele é o passado imediato por quanto aflora ainda no presente que lhe foge. Isso significa que ele é ao mesmo tempo, ponto de vista e ponto de partida: um ponto de vista, um ponto de partida que sou e que, ao mesmo tempo, ultrapasso em direção em direção do que hei de ser” (O ser e o nada).

Na visão da Análise do Discurso, o corpo é efeito de linguagem, ou, poderíamos adiantar aqui, a partir da afirmação de lavra lacaniana “a letra é a inscrição do significante no corpo”, que o corpo é marcado pelo significante e que a letra, que é a inscrição do sujeito nela, “é um gesto simbólico-histórico que lhe dá unidade, corpo.” ( Orlandi, 2001)

Contudo, parece que há um contingente expressivo de indivíduos marcando sua pele num formato “da moda”. Mesmo a tatuagem, que interpreto como protetora (talismã) e sinaliza pertencimento, acaba por sofrer corrosão pela força das implicações do sujeito de mercado. O que ao invés de invalidar as asserções acima, apenas confirma a linguagem da tatuagem e seu discurso. Sua linguagem pictórica é um folículo recobrindo o discurso estofado pelo datado (inconsciente) e uma tentativa de reunir os estilhaços do sujeito contemporâneo.

Escritura no corpo versus inscrição no corpo – fazendo do próprio corpo-sujeito um talismã

Escritura, aqui, penso em termos de "apenas" escrever na pele, enquanto que inscrição me lembra marcar a pele visivelmente, com entrâncias, furando os limites. A inscrição da letra no corpo, afetando a distância entre corpo e letra, traçando na pele “o traço sagrado da letra” (Orlandi, 2001), fechando o corpo com sentidos ocultos aos outros, fazendo do corpo um amuleto da sorte; do destino, por conseguinte. São manifestações significantes nesta maneira peculiar de circulação de sentidos; o corpo marcado está no caminho entre o sujeito e o mundo, e vice-e-versa, tornando-o tocável por uma “tribo” e intocável pelos demais; o sujeito “se textualiza e circula afetado pela existência de significantes” (Orlandi, 2005), usando as tatuagens como pontuações que visam o olhar do outro, empreendem um trabalho de construção de fronteiras, de cercas, que tanto protegem quanto aprisionam, nesse deslize constante do significante. Rabiscam suas letras dentro da carne na tentativa de conter o significante, de dar conta de um “transbordamento de um excesso de linguagem o tempo todo visível sobre o sujeito, que passou à necessidade de um excesso de marcas visíveis em si mesmo” (idem).

Tattoo3 O corpo textualizado na forma de “corpo-que-interpreta” (idem) busca conjurar o descontorno, o equívoco, o deslize de sentidos; um corpo talismânico contra o retorno da letra e seus demônios. Inscrever textos no corpo afeta sua linguagem; agora o corpo totemizado, (diga-se também, objetalizado) como uma figa, pode reivindicar sua independência, tentando desesperadamente a substancialização. O indivíduo tem a ilusão de poder dispor do sujeito-corpo como um objeto que desata males feitos e desrazões, como tão bem fazia Dom Quixote de La Mancha em sua caminhada resoluta pela justiça. A textualização do corpo funciona como um mapa dos descaminhos do sujeito frente a tudo poder ser dito e ter de dizer apenas algumas palavras. Ou ainda seu corpo poder significar tudo, porém acabar não significando, mais que o que pode significar. A tatuagem pode ser uma dessas buscas de contrariar o discurso.

Se a tatuagem é uma escritura de si na forma de inscrição, o indivíduo ao se tatuar, busca a diferença, ser sujeito de si mesmo, uma autoria de si, contra todas as tecnologias que o ameaçam de pasteurização. Essa assinatura de si no próprio corpo é a marca mais visível de processos de subjetivação, que atinge o processo de constituição dos sentidos. Assim, ao retomar o fio inicial de minhas conjeturas penso que, no caso da tatuagem, bem como em outros modos de escrita de si (piercing, poe exemplo), estamos diante de uma falha no ritual ideológico, com a possibilidade de um furo no modo de individualização.

Notas:

* Os textos são: Á flor da pele: indivíduo e sociedade in A escrita e os escritos: reflexões em Análise do discurso e psicanálise (2006) e Retomando a palavra: um corpo textual? In Discurso e texto – formulação e circulação dos sentidos.

** Para repassar os termos utilizei o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa.

*** Foto introdução: Andreas Rainer

Bibliografia:

HUSSERL, Edmund Investigações lógicas São Paulo: Nova Cultural, 1996.

MCLUHAN, Herbert Marshall Understanding Media: The Extensions of Man. Cambridge, Londres: The MIT Press, 2001.

MARIANI, Bethania (Org) A escrita e os escritos: reflexões em análise do discurso e psicanálise São Carlos – SP: Claraluz, 2006.

MERLEAU-PONTY, Maurice Fenomenologia da percepção São Paulo: Martins Fontes, 1999.

ORLANDI, Eni Puccinelli Discurso e texto:formulação e constituição dos sentidos Campinas: Pontes, 2001.

SARTRE, Jean-Paul O ser e o nada Petrópolis –RJ: Editora Vozes, 2002, 11ª edição.

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Levi Leonel de Souza