Fragmentos da vida cotidiana By Raimundo Neto / Share 0 Tweet Nasceu com as pernas fracas, só arriscando os primeiros passos aos cinco anos: tinha medo de iniciativas. Mamãe rastejava, agarrava-se aos móveis, pra lá, pra cá, limpando panelas, preparando refeições, reparando na casa crescente lá debaixo de seu mundo operoso. Pernas fracas e finas; “poliomielite reversível”: assustou a mãe e o pai seu primeiro pensamento. Quando então percebeu que as pernas finas sustentavam o corpo inteiro arriscou-se a caminhar. Poderia aprender a ler, escrever, ir pra escola, inventar a história da menina bonita que corre assim que nasce. Foi uma doença o que a feriu. Veio do nada. Escolheu-a, pois, na infância, é mais fácil atacar, e desferir nas pernas o golpe. E ela, sem palavras, choramingando, sem saber o que era consciência das pernas, temia o futuro: não caminhar impediria a coragem de transbordar dos olhos. Olhos verdes. Sem sombra de medo. A compensação do corpo. O irmão mais velho, operante, nunca a julgou. Ensinou-a técnicas de caça, de desbravar quintais, lançamento perfeitos para derrubar jatobá, sem precisar comê-los. Esclareceu que as coisas eram daquele jeito: homens sempre um passo à frente. Ela, com compreensão de quem não caminha e tem apenas cinco anos, balançava a cabeça acatando a inteligência do irmão Carlos, que em pose de rei já era homem para salvar a irmã. Quando aprendeu a caminhar, o receio era de reversão. Tudo que fez dali para adiante foi exagerado: limpava a casa na carreira, voando, com a vassoura em punho, baratinava de um canto a outro, sentindo as pernas reinserindo-a no mundo. Ela vivia, e caminhava. Quando era panela que precisava lavar, pulava sem sair do lugar, rumor de música no sacolejo das pernas; juntos aos movimentos havia os gritos, para que as pernas se mantivessem acordadas, e nunca mais caíssem no sono. Aprendeu a ser valente: ponta-pé nos arrogantes. Tornou-se decidida e corajosa: “Ahhhhhh, quer quebrar minhas pernas, menino!” Fugia quando os pais plantavam desentendimento em casa. Agarravam-se, as mãos dela e do irmão, e corriam para algum lugar onde o mundo parecesse ser outro. O irmão chorava suplicando justiça, enquanto ela rezava para que as pernas não entristecessem. Abraçava-as. Fazia carinho. Expunha-as ao sol. Coçava-as. Cuidava para que elas não a deixassem sem chão. Cresceu. Passos firmes, mas sem muita direção. Veio um grande amor. E a gravidez a fez sentir-se pesada. As pernas agüentariam. O filho salvaria seu futuro. Ela e ele seriam quatro pernas em busca de terra firme: Eles. Nós. Nunca soube se queria direita ou esquerda; seria abusar das pernas; elas que a levassem para onde quisessem. O futuro não era feito apenas de escolhas tão simples. Poderia errar, cometer absurdos, ensinar o filho a viver, caminhar quilômetros e mais quilômetros, desde de que saísse do lugar: o que uma mulher com pernas não seria capaz de fazer! O filho, eu, nunca aprendeu a caminhar com as próprias pernas; vire e mexe pede os passos da mãe emprestados. Ela cede: retira-os, coloca-os na vida do filho, e fica em casa esperando notícias de um futuro menos ingrato. Queria que o filho tivesse nascido da batata de sua perna magra: fosse mais corajoso o menino. Nasceu mesmo do ventre, nove meses como os outros, molengo e cabeçudo; filho de uma barriga jovem: vai ver por tal causa vive empurrando com a barriga a existência. Caminha sem parar ainda hoje em dia, atualizada. Carrega a eternidade na escassez das pernas. São firmes e sempre escondidas nas mesmas calças: mesmo com coragem não é exibindo-se que a vitória tenta aproximação. As pernas, que de estupidez infantil não desbravaram o mundo ainda cedo, hoje, vivem a sorrir: limpam a casa, vão ao colégio, acompanham o único filho, admiram outras pernas mais torneadas. Alegres, elas até sonham com silicone, mas receiam ofender outra doença. Escolhem continuar mirradas e saudáveis. Hoje, acreditam em Deus. E não abrem mão da felicidade. Sorriem com passos largos as pernas de outrora. E pernas, pra que te quero!