Fogo-fátuo

 As cebolas refogavam, nos giros da frigideira, e o frango empanado dançava gorduroso do centro para as beiradas. Passei a colher na manteiga, e derramei na mistura que fritava. Temperei tudo com minha solidão, e concentrei-me nos pedacinhos que douravam lambuzados. Subitamente resolvi queimar a mão também. E esqueci-me do juízo por poucos segundos. Shhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhh!

Ninguém pediu silêncio. Não havia ninguém para roubar aquele sofrimento, que me emprestasse algum sossego. 

O calor resolveu contribuir com sua presença, e eu com meu grito afiado, cortando o ar em pedacinhos, fiz do meu presente neurótico uma mistura extática e sofrida e girei com meus escândalos de liquidificador defeituoso, cuspindo uma raiva elétrica e consistente, cheio de sistemas comprometidos.

A dor estava fora da programação. Falo daquela dor vermelha, cheirando a vida queimada. Pois esta outra dor, de falta de amor e atenção, de vida que não tem mais rumo, de sol que se transformou em vela de sete dias, de beijos nos olhos que não voltarão, da paixão com os dias contados, de esperar a morte nossa de cada dia parar de acontecer, ahhhhhhhhh! Esta dor eu carrego no corpo todo, e é seca, pesa em meus olhos, e me distancia de qualquer sujeito com tons resolvidos. Agora tenho para onde olhar, e continuar com a dúvida se é de vida ou morte essa ferida.
 
Então decidi me desligar.

Passei pomada pra sarar rapidinho, no peito; senti uma ardência com gemidos (a salvação às vezes chega pastosa); depois lavei a mão doída, limpei a outra dor encarnada, cheio de misericórdia, e usando o resto da pomada, besuntei a mão, e o resto do meu dia, com felicidade.

O sono chegou manso à medida que me senti salvo. Sonhei com pessoas de peito aberto e corações que piscavam alucinados, coloridos. E era possível fazer trocas justas, dignas, ou encontrar seu Você Nasceu Pra Minha Vida Ser Completa em lugares específicos, até em bares chamados Pântano. Bastava que houvesse encaixe, uma adequação, um click e pronto. Conexão.

Quando acordei (e o sono ainda se agarrava a meu corpo, escorrendo de meus olhos apaixonados por alguém que nunca aconteceu precisamente em mim), monstros-bolha haviam surgido e armado uma guarnição em meus dedos, e cheios de si, dominadores, me emprestaram a ridicularia do desastre que é um pateta na cozinha e uma mão esturricada, banhado a fogo e desatenção.

Olhando para a determinação cor-de-rosa da minha fisiologia, o pink-carne-viva que se tornou uma pequena porção do corpo, comecei a entender que a dor chegou, em 2º grau, e me deixou estranhamente imerso numa necessidade nova e assustadora, só pra me expor. O desejo veio assim queimando tudo, e sempre dá um jeito de incendiar qualquer mentira.

Foi assim que ardi, entregando-me à verdade, deixando de lado a crença obstinada de que o amor só existirá inventado.

Não é qualquer um que me fará feliz. Minha vida não se trata de uma orgia sentimental, ainda que inflamável. Conheço tudo o que sinto, e se não tem nome é só por omissão mesmo, porque não falta comprometimento para acreditar no amor e na entrega. E vou me repetir, como os passos que dou todos os dias. E precisarei de outra entrega, como a minha.

Que alguém coloque a mão no fogo por mim. E as cascas da insegurança membranosa que revestem meus mínimos acessos de desesparança poderão ser destruídas, e algo renascido, cru, descamado e vívido poderá ser revelado, que desistirá de fugir da próxima tentativa de ser o mesmo dentro de qualquer solidão amigável.

Como fazem os homens e mulheres que me transformaram nesta tocha afetuosa e compassiva que não tem luz própria, e que tem um amor em combustão.
Preciso, sim, do combustível que eles trazem nos olhos e no peito.

E foi a natureza reativa da necessidade ilimitada que me assustou. Primeiro uma fumaça dulcificada, depois as chamas. Chamando você. E tudo que eu não soube querer aos poucos, e devagar. E acredite, não vou incinerar você com isso tudo.

Sei apenas que já não estou mais cru para o novo amor que chegar. Nem passei do ponto.

Com a temperatura adequada, espero o calor da próxima entrega.
 
 
 
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Raimundo Neto